A encenação laica de uma ditadura religiosa

    (*) Ucho Haddad

    Há dias, quando a crise financeira global ensaiou os primeiros sinais de arrefecimento, o presidente dos EUA, Barack Hussein Obama, imaginou que uma calmaria, mesmo que curta, pudesse soprar sobre o seu tabuleiro de problemas. Mas acabou acontecendo exatamente o contrário. Depois de um discurso na direção do mundo islâmico, proferido há dias na Universidade do Cairo, Obama, muito contrariado, assistiu à vitória de Mahmoud Ahmadinejad nas eleições iranianas, um movimento inesperado no enxadrismo diplomático internacional adotado pela Casa Branca como um dos principais estandartes políticos para os próximos quase quatro anos.

    Desde a Revolução Islâmica, em 1979, que apeou do poder o xá Mohammad Reza Pahlevi, o Irã passou a conviver com o fundamentalismo religioso, que, como sempre, faz da ortodoxia da fé o escudo para ações criminosas que colocam a paz mundial na esteira das dúvidas. Com as bênçãos dos aiatolás e questionáveis 65% dos votos válidos, o triunfo eleitoral de Ahmadinejad mostra que será preciso aguardar um bom tempo para que a paz acene para o sempre belicoso Oriente Médio.

    Se por um lado a continuidade de Mahmoud Ahmadinejad no poder está no campo da suspeita, por outro os 32% de votos conquistados pelo oposicionista Mir Hussein Moussavi devem ser levados em conta. Especialmente se analisadas as brutalidades cometidas nas últimas horas contra os que ainda discordam do resultado do pleito. E é necessário usar o “ainda” porque em um regime fundamentalista tudo é possível. Muito se falou sobre a prisão de Moussavi após o fim da eleição, mas o governo de Teerã negou veementemente o fato.

    Ahmadinejad precisa ter sua vitória confirmada pelo Conselho de Guardiões – formado por aiatolás quase sempre ortodoxos – a quem o derrotado Moussavi recorreu solicitando a anulação da eleição, sob o argumento de fraude. O presidente reeleito nega qualquer ilegalidade no processo eleitoral, mas quem ousar contestar o veredicto terá de enfrentar a truculência da polícia iraniana. Desde a criação da República Islâmica iraniana, o tal Conselho jamais deixou de referendar um resultado eleitoral. Mesmo que o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, seja próximo de Moussavi, o referendo à reeleição de Ahmadinejad dificilmente será negado.

    Para espantar o viés de irregularidade que a recente eleição carrega, o aiatolá Ali Khamenei determinou a investigação de supostas fraudes na disputa política da última sexta-feira. Mas os investigadores serão os mesmos que tentam reprimir desde a última semana o clamor dos oposicionistas. Longe de ser um clérigo inocente, Khamenei sabe muito bem o que ocorreu na eleição. Fazer de um condenável escândalo a mais pura e cristalina verdade pouco lhe custará.

    De quebra, o próprio chefe supremo do Irã garante que o programa nuclear seguirá seu caminho. Pelo que se sabe, Maomé – e nem mesmo Allah – defendeu, em algum momento, a beligerância como a única saída para a manutenção da fé. Que entre o Ocidente e o Oriente há desencontros dos mais variados todos sabem, mas é preciso lembrar que religiões nada mais são que formas distintas de interpretação do mesmo tema. Tudo o que estiver além dessa vertente é remar contra a maré, para não dizer que se trata de uma balburdia minuciosamente planejada, na qual apenas uma ínfima minoria leva vantagem.

    No contraponto, enquanto a economia do Irã sofre com a queda do preço do petróleo no mercado internacional, os iranianos se lambuzam com a liberdade pífia e vigiada que o governo lhes concede como forma de anestesiar os efeitos de um isolamento político mundial. Tanto é assim, que 65% dos iranianos endossaram a sandice de Ahmadinejad, que insiste em manter o mistério sobre o programa nuclear do país. O presidente afirma que o programa tem fins exclusivamente pacíficos, mas não o faz com excesso de convicção. O que obriga os inimigos históricos a dormirem de olhos abertos. E o Estado de Israel é um deles.

    Para reforçar seu suspeito favoritismo e aumentar o fanatismo burro de seus eleitores, Mahmoud Ahmadinejad negou, há meses, a existência do holocausto. Mas o próprio Ahmadinejad disse que seu adversário, Moussavi, adotou práticas nazistas durante a campanha. Não se sabe se o presidente iraniano fez uma piada de mau gosto ou tentou se redimir com os inimigos israelenses.

    Não bastasse a ausência de bom senso que o ortodoxismo patrocina, as incertezas sobre o programa nuclear colocam o Irã na mira de muitos países, em especial dos EUA e de Israel. Ciente dessa situação, Ahmadinejad tem se aproximado de alguns dos artífices da nova lufada comunista que intimida a América Latina. É o caso de Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez.

    No caso do venezuelano Chávez, o presidente iraniano está sendo usado como marionete política para açoitar o estado ianque. Acostumado a discursos irresponsáveis, Hugo Chávez caiu em desgraça quando adotou a chacota para criticar a Casa Branca. Diante desse engessamento político, o venezuelano preferiu, então, abusar da disponibilidade de Ahmadinejad. E obviamente que essa “barriga de aluguel” não acontece porque Ahmadinejad acha Chávez simpático ou vice-versa.

    Fato é que nesse cenário de ofelimidades todos querem lucrar ou, então, perder o mínimo possível. De Barack Obama a Mahmoud Ahmadinejad, de Hugo Chávez a Benjamin Netanyahu. Não sem antes passar por Lula da Silva e Fidel Castro.