Aquário

(*) Marli Gonçalves –

Glub, glub, glub. Chove forte lá fora. De novo. E lá fora mais ainda, lá para os outros lados do mundo chove e neva, e há ameaça de frio de menos 50 graus Celsius. Em alguns lugares o calor torra até amendoim; em outros, o vento arrasta o que pode, pior do que nossa imaginação cinematográfica poderia imaginar. Tudo inunda, desmorona, queima ou se afoga. Assistimos às tragédias de nossos aquários?

Aqueles peixinhos nadando para lá e para cá com suas caras desinteligentes nunca me atraíram muito. Há anos-luz, meu irmão teve um aquário e quando saía deixava os “partos” por nossa conta, meu e de minha mãe, e fazíamos o que dava utilizando peneiras de plástico para salvar os pobres filhotinhos de suas mães canibais. Eu só gostava quando ele comprava aqueles pequenos peixes-lâmpada, os néons. Entrava escondido no quarto dele e ficava apagando e acendendo a luz só para vê-los faiscar dentro daquele vidro.

Mas a gente é gente, não é peixe. A sensação de ver tudo debaixo da água não se completa nem com nadadeiras e outros adaptadores. Talvez alguém de férias, pés na areia, se refresque. Não há saúde de velho, novo ou carapanã que resista. Novidade? Nenhuma. Sempre houve chuvas, sempre houve desmoronamentos. De meus tempos como repórter de cidades guardei a experiência e a paúra por tantos deslizamentos e mortes que vi. Ainda hoje tremo e temo passar perto de córregos, rios, baixadas… Quem já ficou boiando na água sabe melhor do que estou falando.

Assim, não mudou nada. E deveria ter mudado. Quanto mais o tempo passa, mais o clima enlouquece, e ficaremos ainda mais sujeitos a essas movimentações de terra abaixo e para os lados. Somos como peixes em aquários, e baratas tontas. As ocupações irregulares, construções mambembes e acintes arquitetônicos continuam sendo erguidos bem nas nossas fuças, à beira de nossos mares, de nossos rios, das represas, das estradas, dos morros.

Ah, e no topo dos prédios! O perigo que vem do alto. Em São Paulo basta olhar para cima. É uma história completa (que outro dia conto, inteira): eu fui vítima recentemente de alugar um apartamento de último andar, um verdadeiro barquinho furado, construído e ampliado com a tecnologia do cuspe – coisas que a gente só vê depois que vai viver no local e fica andando para lá e para cá aparando a água com baldinhos, paninhos e toda sorte de reza contra São Pedro, pró-São Benedito. Fiquei doente, tenho fotos e filmes da água caindo, jorrando, do lustre, do bocal da lâmpada. Nem sei como o irregular lugar não desmoronou; pelo menos não ainda, que eu saiba. Coitado de quem agora caiu no conto-do-vigário em que caí. Vivendo isso a gente aprende um pouco do que é desespero.

Nesse início de ano novamente vimos todo mundo apavorado, falando, chorando, porque na Pousada de Angra dos Reis tinha gente que podia ser eu, você, nossas famílias. Ano passado foi Santa Catarina. Há 30 anos, Caraguatatuba.

Nos dias anteriores já havia dezenas de mortos, feridos, desaparecidos. Os peixes pobres que estão jogados há mais de um mês em abrigos, os que amarram os seus filhos, armários, fogões, geladeiras e colchões para não serem levados, e que andam com a água na altura dos joelhos são filmados pelos horrorizados repórteres que os visitam de terninhos e galochas, às vezes de barquinhos. Gravadas, as matérias proferindo as mesmas perguntas e ouvindo as mesmas respostas de como é possível, do dia para a noite, perder-se tudo. E recomeçar do nada, para construir um pouco, que pode virar nada, nadando, de novo, nas próximas águas. Brasileiro não desiste nunca, mesmo.

Certas coisas têm pouca distinção de classes sociais. As ruas das cidades grandes alagadas, os buracos, a falta de sinalização e iluminação – e os poços de falta de consciência são comuns, com o lixo nas ruas e bueiros. Tudo virou qualquer coisa – aquecimento global, nível dos oceanos, mudanças geológicas, catástrofes naturais, impermeabilização do solo, devastação das florestas, palavras impressas em discursos tão fáceis de demolir quanto casas penduradas nas encostas, as ocupações dos morros, a corrupção, a especulação imobiliária.

Enquanto isso, um presidente bolinha com isopor na cabeça coçava a bunda na praia. O país sem timoneiro aguenta. Volto a ouvir só os assobios: uma diz que está “atchim”, outro que está nem sei onde. E não adianta perguntar detalhes: mentiriam nas respostas.

Sempre ouvi falar da modernidade da Era de Aquarius, quando as crianças começariam a nascer sem sisos. O signo de Aquário costuma privilegiar seus aniversariantes, gente com cabeça à frente de seu tempo.Vários deles me despertaram grandes e inesquecíveis paixões e admiração. Mas, olha bem, que o que estamos assistindo é só toda a rabugice e cabeça-dura de Capricórnio, do bode em cima da montanha, e que vai seguindo até o dia 20.

Chove lá fora. E muito. Muita água vai rolar, e nem março é – apenas o Verão. Bons tempos aqueles que Verão trazia modas, novidades, só alegria. Ultimamente o que a gente tem visto é o verão só de dentro do aquário que nos botaram, mudos e desinteligentes como os peixinhos.

Glub, glub, glub.

São Paulo, Veneza, 2010

(*) Marli Gonçalves, jornalista. Adora sereias e suas lendas e fábulas. Quem sabe possa cantar como elas, encantando marinheiros, balançando a cauda, prevendo nosso futuro molhado? E para vocês não dizerem que não falei das flores, um pedido: deixem o Bóris Casoy em paz. Tem muita coisa mais importante que frases soltas acontecendo. Não me façam lembrar de como achava engraçado os imponentes chefes de redação em seus pequenos aquários (como ainda chamam as suas salas), alheios à toda realidade do lado de fora. A gente pode estar criando é ambiente para que apenas os tubarões sobrevivam. E tubarão não é peixe de aquário, bom para nadar com a gente.

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