Levantar e sacudir o acampamento

    (*) Marli Gonçalves –

    Existem várias expressões corriqueiras que vamos usando na vida, mas só de vez em quando elas fazem realmente algum sentido. Tem quem arme a barraca; tem quem levante acampamento. Como não pude decidir, vou levantar. E armar minha barraquinha em outro lugar, mudar o meu lar.

    Estavam quietinhas, tranquilas, acomodadas, algumas até curtindo o esquecimento. Cada coisa tinha lá seu lugar. Ou dormitavam em meio ao caos, com outro montinho de coisas socadas em cima, empilhadas em gavetas, prateleiras, debaixo de pias, extraviadinhas junto com extraviadinhos. Há dois anos e meio elas tinham sido organizadas, revistas, espanadas, arquivadas, postas em caixas. Depois que chegaram, foram repostas em outras gavetas, de outros armários. Toda uma nova organização. E agora lá vão serem movimentadas de novo. Imagine. Se a gente muda de querer de um dia para o outro, o que dizer de depois de dois anos e meio? Fico até ansiosa pelo resultado. Assim, nesse levantar e rearmar de mais uma mudança, saberei mais de mim mesma – do que continua importante ou será desprezível. Uma espécie de tecla “Atualizar”, F5. Refresh.

    Uma nova hierarquia se sobrepõe. De novo o que era da sala poderá ir parar lá no quarto, e o quadro da parede fará companhia a alguma outra imagem distante. Há quem chame de releitura. Eu chamo de reciclagem e reaproveitamento total das possibilidades, dentro delas, sempre com o mesmo rol de coisas, hoje apenas ainda mais gastas. É o que dá.

    Por mais que ame a vida cigana há uma coisa que não assimilei nunca: o nomadismo. Não gosto de mudar. Mas quem pode, pode. Quem não pode se sacode: eu vivo em imóveis alugados. Fico igual ao pó debaixo das batidas do espanador: no ar, voando por aí. Queria poder voar em tapetes mágicos, mas enfim não deixa de ser: os meus tapetes serão mágicos porque serão esticados para tampar pequenos problemas e outras marcas. Não jogo sujeira debaixo deles.

    Mudar é bom, mas podia haver um teletransporte. Preciso me acostumar à anarquista idéia de que “minha pátria são meus pés”, mas como? Minhas tranqueirinhas, o pouco do muito que tenho, precisam me acompanhar. Se eu já tenho vontade de levar algumas delas se resolvo ir só até ali em um fim de semana, dentro da(s) mala(s)! Imagine a dificuldade de deixá-las para trás, na estrada, se cada uma traz uma história, o registro de um tempo, de uma pessoa, de uma alegria ou de uma tristeza; de um sacrifício, de uma paixão, ou de uma paixão sacrificada que gerou este ou aquele objeto. Fora a roupinha. Pode ser uma linda, ou só aquela camiseta que hoje até já poderia ter virado um trapo digno de pano de chão, mas não – virou imortal, talvez por ter sido “testemunha” ocular de alguma boa. Todas nós temos um “vestido azul” como o da Monica, aquela, a Lewinsky, a do Clinton.

    Escrevi alguns textos sobre isso tudo, esse mover – entre os que mais gosto está o Mexe, remexe, espanta fantasmas, de janeiro de 2009, que até reli há pouco. Porque sei que tudo vai acontecer de novo. Vou mexer e remexer. Decidir o que vai continuar comigo nesta mochila. Tenho pouco tempo mais uma vez. Precisarei de muitas caixas, que começo a catar por aí. Quando começar a levantar o acampamento de vez – e ainda não sei por onde – vai ser até o fim. Toda a energia voltada para este canal.

    Mas primeiro é preciso aplainar o terreno onde ele será armado mais adiante, com barraca e tudo, que precisarei fincar. Isso custa um tanto, e integra o que ando chamando de planejamento mental. Primeiro, organizar tudo na cabeça. Depois, na ponta do lápis, torcendo para a ponta não quebrar, nem a calculadora causar depressão. É uma atividade contemplativa, da imaginação, que usa a capacidade de desenhar o nada instalando tudo. Tenho acordado de noite, e sempre nos sonhos do sono estava carregando alguma coisa de um lado para outro. Na última me toquei que talvez tenha de improvisar um lugar para por a louça, a louça que quebra. Qual é? Pensa que eu não tenho enxoval?

    Tem as cores. Que cores terão as paredes, o teto? Já brincaram com os simuladores virtuais que existem na internet? Enlouquecedores. E há o chão.

    Há as plantas. As plantas necessitam de atenção e bate-papo – elas têm sentimentos e não podem ser transportadas como se fosse qualquer coisa. Já iniciei conversações, e prometi que ficariam bem e que seremos felizes onde quer que estejamos juntas.

    Há as roupas. De cama, mesa, banho e de gente. Minha casa faz lembrar o pantanal, tal o número de araras. Fora os sapatos. E as desajeitadas botas, que ainda não vi ninguém ter como resolver sua logística. Fora bolsas, chapéus(!), o bibibi e o bobobó.

    E há os papéis, muitos, as pastas, os livros, os discos (sim!), as fitas (K7, sim!), os CDs, DVDs. Há as máquinas – de tocar música, de lavar, de fazer comida, de limpar, de gelar, de sintonizar. Fora as vassouras, as pás e todos os seus esquadrões – os produtos limpadores de sujeiras leves e pesadas, de gorduras, de limo, de brilhar, lavar e perfumar. Nos banheiros, ainda precisam ser instalados os produtos de brilhar, lavar e perfumar a gente, nosso corpinho. De maquiar. E de cuidar de nossos dentes.

    Dizem que os índios vivem com no máximo cem itens. Sou descendente deles, mas não me passaram seus dotes e eu não posso (e não sei) viver de tanga.

    São Paulo, em movimento, julho de 2011

    (*) Marli Gonçalves é jornalista. Pelo menos já decidiu o tema e o nome do seu próximo lar. Meu buraquinho será a “Casa da Árvore”, um ninho, feito com trancos e troncos, algumas plumas. Onde eu possa plantar meus amigos; e me proteger dos inimigos. Camuflada.

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