Morte de Al-Khaddafi faz Castro Alves sacolejar na tumba, mas democracia líbia ainda é uma incógnita

    (*) Ucho Haddad –

    “Libertas quae sera tamen”. Eis o dístico latino (Liberdade ainda que tardia) que estampa a bandeira das Minas Gerais, mas que hoje, 20 de outubro, deve ser solenemente cedido aos rebeldes líbios que decretaram o fim de uma ditadura sanguinária que durou 42 anos. Na esteira de uma emboscada bem sucedida, o megalômano e truculento Muammar Al-Khaddafi já não mais pertence a esse mundo, se é que além da morte existem outras paragens.

    Recluso em Sirte, sua cidade natal, desde que foi obrigado a fugir da capital Trípoli, como forma de postergar a própria derrocada e escoar a dinheirama que surrupiou dos líbios, Muammar Al-Khaddafi tombou à sombra de um fogo cruzado entre rebeldes libertários e apoiadores obedientes. Com a confirmação da morte do ditador, que após ser baleado nas pernas foi alvejado por um tiro na têmpora, vários líderes internacionais comemoraram o feito e anunciaram a liberdade da Líbia. Desde já lembro que comungo do pensamento de que o calvário alheio não deve ser comemorado, mesmo que do inimigo seja. De igual modo, por ser um homem de fé inabalável, discordo com veemência da Lei de Talião.

    É no mínimo temeroso afirmar que o regime ditatorial líbio está definitivamente aniquilado. O que se conseguiu até então, mesmo que de forma precária, foi derrubar um dirigente totalitarista e criminoso. Festejar o fim de um quase perene estado de exceção é exercício do “achismo”. Isso se explica pelo fato de a ditadura líbia ter se consolidado com a participação de “sócios” do aparelho estatal, pois do contrário Al-Khaddafi não teria sido tão abusado quanto foi ao longo de mais de quatro décadas. Diferentemente do que imaginam alguns desavisados, o inicio da construção da democracia líbia ainda demandará tempo e trabalho árduo, pois trata-se de um país formado por tribos que a História mostra desentendimentos ferrenhos e longevos, mas que acabaram vivendo sob uma paz fictícia, esculpida pelo cinzel sanguinário de Muammar Al-Khaddafi.

    Ao liquidar Muammar Al-Khaddafi, os rebeldes não extirparam todos os chamados “sócios” do aparelho ditatorial, como também não conseguiram apreender o arsenal bélico que o ex-ditador armazenou durante sua estada no poder. Said al-Islam, filho de Al-Khaddafi, conseguiu escapar da emboscada rebelde, situação que aumenta o risco de um contra-ataque desesperado dos apoiadores instruídos para criar um novo front de batalha, o que em tese facilitaria a fuga do suposto herdeiro político do finado ditador. E é exatamente nesse ponto que repousa inquieta a retomada da democracia na Líbia. O Conselho Nacional de Transição vem prometendo, desde a morte do ex-líder, liberdade e união ao país, mas é difícil imaginar consenso em uma nação divida em guetos radicais, como são as tribos líbias.

    Se a chamada “Primavera Árabe” pudesse ser classificada em capítulos, o mais longo e complexo por certo foi o da Líbia. Ao contrário do que ocorreu na Tunísia e no Egito, onde os ditadores foram depostos no vácuo do clamor popular, a Líbia foi palco de um embate sangrento e demorado, que foi tecnicamente abreviado depois que a Casa Branca, muito a contragosto, concordou com a incursão da OTAN no país africano.

    Considerado pela esquerda radical como um dos expoentes da corrente ideológica no mundo árabe, Muammar Al-Khaddafi criou um socialismo próprio, cujas diretrizes constam do chamado Livro Verde, no qual o então ditador discorria sobre questões como a condição das mulheres, dos trabalhadores, dos indivíduos e dos sistemas políticos em geral. Conhecido financiador de grupos terroristas, alguns dos quais responsáveis por ataques históricos, Al-Khaddafi foi obrigado a melhorar suas relações com o Ocidente, sob pena de ver a Líbia ser varrida do mapa. O que mostra sua porção dual diante da necessidade de se manter no poder.

    O poderio militar da ditadura comandada por Muamar Al-Khaddafi e o seu perfil psicótico exigiram a entrada da OTAN no processo de derrubada do regime líbio, incursão que foi alvo das críticas de algumas autoridades ao redor do mundo, a começar pela agora socialista e chicaneira América Latina. A visão tacanha e obtusa desses senhores do socialismo não consegue alcançar a necessidade de se evitar um massacre, o que foi possível com a participação da Organização do Tratado do Atlântico Norte.

    Mesmo que tão demorados quanto incertos, os ventos de liberdade que ora sopram sobre a Líbia me levam a resgatar uma poesia de Castro Alves, que diante do fim da era Al-Khaddafi por certo deu pulos de alegria no além. Trata-se de “Ode a Dous de Julho”, que segue abaixo e que hoje transforma Castro Alves em um beduíno de aluguel e a Bahia na versão tropical da árida e petrolífera Líbia, já que a esperança de liberdade, mesmo que de sangue manchada, rompe o horizonte do totalitarismo criminoso que sobreviveu sob as ordens absurdas de Al-Khaddafi.

    “Ode ao Dous de Julho”

    “Era no dous de julho. A pugna imensa
    Travara-se nos cerros da Bahia…
    O anjo da morte pálido cosia
    Uma vasta mortalha em Pirajá.
    “Neste lençol tão largo, tão extenso,
    “Como um pedaço roto do infinito…
    O mundo perguntava erguendo um grito:

    “Qual dos gigantes morto rolará?!…”
    Debruçados do céu… a noite e os astros
    Seguiam da peleja o incerto fado…
    Era a tocha — o fuzil avermelhado!
    Era o Circo de Roma-o vasto chão!
    Por palmas-o troar da artilharia!

    Por feras-os canhões negros rugiam!
    Por atletas-dous povos se batiam!
    Enorme anfiteatro — era a amplidão!
    Não! Não eram dous povos, que abalavam
    Naquele instante o solo ensangüentado…
    Era o porvir-em frente do passado,

    A Liberdade-em frente à Escravidão,
    Era a luta das águias — e do abutre,
    A revolta do pulso-contra os ferros,
    O pugilato da razão — com os erros,
    O duelo da treva-e do clarão!…
    No entanto a luta recrescia indômita…

    As bandeiras — como águias eriçadas —
    Se abismavam com as asas desdobradas
    Na selva escura da fumaça atroz…
    Tonto de espanto, cego de metralha,
    O arcanjo do triunfo vacilava…
    E a glória desgrenhada acalentava

    O cadáver sangrento dos heróis!…
    Mas quando a branca estrela matutina
    Surgiu do espaço… e as brisas forasteiras
    No verde leque das gentis palmeiras

    Foram cantar os hinos do arrebol,

    Lá do campo deserto da batalha
    Uma voz se elevou clara e divina:
    Eras tu— Liberdade peregrina!
    Esposa do porvir-noiva do sol!…
    Eras tu que, com os dedos ensopados
    No sangue dos avós mortos na guerra,
    Livre sagravas a Colúmbia terra,

    Sagravas livre a nova geração!
    Tu que erguias, subida na pirâmide,
    Formada pelos mortos de Cabrito,
    Um pedaço de gládio — no infinito…
    Um trapo de bandeira — n’amplidão!…”