Perseguição e combate à livre negociação

(*) José Pastore –

Esse título seria absurdo em qualquer país civilizado. Mas no Brasil não é. Apesar de muito se enaltecerem as virtudes da livre negociação, entre nós ela é mais combatida do que apoiada. A situação é intrigante. Na sua maioria, os sindicatos de empregados e de empregadores evoluíram na arte de negociar. Nas mesas de negociação, o que era um teatro passou a ser um exercício de defesa de posições com base em dados e argumentos.

Concluída a negociação, ironicamente, as partes não sabem se o que foi acertado hoje valerá amanhã. Isso porque os poderes públicos interferem sem cerimônia no resultado dela. Procuradores, auditores fiscais e juízes, com honrosas exceções, acham que sabem mais do que as próprias partes.

São vários os casos de anulação do esforço negocial. Um caso em tela é o do acordo firmado entre empresários, trabalhadores e governo no Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar. Por mais de um ano, os atores sociais negociaram e, por consenso, aprovaram um programa que visa a aprimorar as condições de saúde e segurança, alojamento, transporte, alimentação e treinamento, assim como eliminar os intermediários na contratação de mão de obra (“gatos”) e garantir aferição adequada da produção dos trabalhadores nas atividades manuais daquela cultura. Mais de 250 empresas aderiram ao programa. Foi um grande avanço.

O passo maior foi quando as três partes decidiram que, sob a supervisão de uma Comissão Nacional, empresas idôneas no campo da auditoria, com base em critérios predefinidos por essa comissão, mediriam os avanços (ou retrocessos) em relação às metas acertadas. Para os que viessem a provar a sua conformidade no cumprimento das metas se atribuiria o Selo de Compromisso, como um símbolo de reconhecimento. E assim vem sendo feito, tudo sob a vigilância da Comissão Nacional. Das 250 empresas que aderiram ao programa, 169 receberam o selo. Foi um acordo sofisticado, pois empregados, empregadores e governo, além de fixarem metas, assumiram a responsabilidade de se autogovernarem.

Pois bem. O Ministério Público do Trabalho, ao encontrar infrações trabalhistas em algumas das empresas reconhecidas, vem desferindo um forte ataque ao acordo como um todo. E mais do que isso: o inquérito aberto pretende culpar o governo por ser parte de um acordo que “encobre” irregularidades trabalhistas que deveriam ser punidas pelos seus funcionários.

É pena ver as autoridades desperdiçando uma concertação tão engenhosa. Esperava-se delas que valorizassem a livre negociação, em lugar de pretender desmoralizá-la. É evidente que o acordo firmado não é perfeito. Os riscos de infração estão sempre presentes e o acordo não afasta a responsabilidade do exercício das funções específicas dos procuradores, dos auditores fiscais e dos magistrados do trabalho. Onde houver ilícitos, eles têm de agir, admoestando, corrigindo e punindo – sem, contudo, destruir a vontade maior das partes que, de forma solidária, se empenham para cumprir as metas de um acordo construído por consenso.

Fiquei muito desapontado. Esta deveria ser a hora de as autoridades se irmanarem na cruzada de tudo fazer para aperfeiçoar as condições de trabalho na difícil cultura da cana-de-açúcar, homenageando, assim, um esforço pioneiro de autocontrole das partes. Esse mecanismo poderia ajudá-las no provimento de dados para a execução de suas próprias missões de fiscalizar e julgar. Afinal, os elementos das verificações do cumprimento do acordo são públicos, em especial, para os poderes constituídos.

É esse sentimento de frustração que me levou a escolher o título acima. Nossas autoridades precisam respeitar e estimular a livre negociação. É o que exige o Inciso 26 do artigo 7º da Constituição Federal.

(*) José Pastore é professor da FEA-USP, membro da Academia Paulista de Letras e Presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomércio de São Paulo. (www.josepastore.com.br)