Holocausto gaúcho: quando a comanda de uma boate transforma-se em atestado de óbito

    (*) Ucho Haddad –

    O Brasil amanheceu de luto neste domingo, 27 de janeiro. O mundo parou diante da tragédia ocorrida em Santa Maria, importante cidade do Rio Grande do Sul, onde um incêndio em uma boate levou mais de 200 jovens universitários à morte por queimaduras, asfixia e pisoteio. Informações preliminares apontam para o uso de fogos de artifício em recinto fechado e com material inflamável e tóxico como isolamento acústico, durante o show de determinada banda.

    O sentimento que toma conta do País é de desolação, tristeza e dor. Há quem diga que acidentes fatais acontecem e que a vida deve continuar, mas esses donos de discursos frígidos são doentes de alma. Não é esse o comportamento que se deve ter diante de uma tragédia dessa proporção. Age e comporta-se assim quem não perdeu um filho no incêndio ou, por que não, tem dificuldades para administrar perdas passadas. Confesso que, mesmo com vasta intimidade com as palavras, foi difícil digitar a primeira letra deste artigo.

    Sem qualquer comparação entre os perfis sociais dos cidadãos, esse palavrório desmedido e insensível é semelhante ao dos que defendem a invasão policial em presídios para eliminar os transgressores da lei. Quem se apoia nesse tipo de oratória repulsiva por certo, ao acordar, ora e pede proteção a Deus, esquecendo-se que o Criador não faz distinção entre os fora da lei e os que a cumprem. Apenas dá a cada um a contrapartida adequada.

    A tragédia de Santa Maria não mais sairá da memória dos brasileiros e da história nacional, mas deve ficar como alerta para a necessidade de imediata mudança no comportamento humano. Há algum tempo, não me recordo com precisão quando, escrevi que o mais importante na vida é ser, não ter. Seja o que for, quem for, como for. Seja o que quiser, o que conseguir, o que puder. Seja, apenas seja, mesmo que o sonho fique distante. O planeta vive cada vez mais à procura de pessoas que são (sãs também), pois ter nem sempre é a solução. O ter pode ser consequência do ser. E se o ter não for conjugado ao longo da vida, um não será menor ou pior do que aquele que se deparou com o verbo que traduz o materialismo em todos os tempos – no pretérito, no presente e no futuro. Nesse momento de dor, as enlutadas famílias gaúchas dariam tudo e mais um pouco para eliminar as chagas dos corações, para trocar uma lágrima de tristeza por um sorriso de alívio. Agora, o que adianta ter? Absolutamente nada!

    A sociedade é mutante e cria padrões comportamentais de acordo com os interesses do momento. São parâmetros de aprovação para a inserção do indivíduo em determinada casta, que se descumpridos podem levar a pessoa à marginalização social. O jovem que não vai à balada ou não tem o celular de determinada marca, por exemplo, é marginalizado por um gueto que confunde ter com ser. É a partir daí que surgem as humilhações, o desmoronamento psicológico, o distúrbio comportamental. A vida exige bom senso e personalidade forte daquele que quer encará-la dentro das próprias convicções e distante dos padrões pré-estabelecidos.

    Analisemos com calma o que ocorreu na boate de Santa Maria. Lá estavam reunidos aproximadamente dois mil universitários. E quando falamos em universitários o pensamento segue a trilha da lógica e conclui que esses cidadãos também são lógicos. Afinal, estão na flor da idade, com a massa cinzenta em pleno funcionamento e ainda desfrutando do cotidiano acadêmico. O que, em tese, dá a qualquer um léguas de vantagem em termos de raciocínio. Qualquer pessoa lógica sabe que quanto maior o número de pessoas em um espaço reduzido, maiores são as chances de ocorrer um acidente. Até porque ensina a Física que dois corpos não ocupam o mesmo lugar simultaneamente. A lógica não estava na fila de entrada da boate, muito menos nos acordes da banda que supostamente provocou o incêndio fatal. O importante era estar presente à balada para não ser excluído das conversas do dia seguinte.

    Fossem lógicos, os donos do empreendimento também conheceriam a teoria do físico Isaac Newton. No mundo da Química essa teoria é a da impenetrabilidade. Discordar dessa obviedade é algo como duas pessoas vestirem a mesma calça ao mesmo tempo. Se não forem dois anoréxicos dentro da calça de um gordo, é tragédia na certa, pois a calça há de arrebentar de forma violenta.

    Pode ser que os donos da boate já tenham ouvido falar nesse tal de Newton, mas preferiram desafiar a teoria do físico inglês, possivelmente sem conhecê-la a fundo, na conta bancária, onde duas ou mais cédulas conseguem ocupar o mesmo espaço e ao mesmo tempo. E quanto mais cédulas do vil metal ocupando o mesmo espaço, melhor. Essa á teoria da ganância, do querer cada vez mais, o que dá a falsa sensação de destaque dentro de uma sociedade assustadoramente consumista. O que os donos da boate ganharam materialmente até hoje será insuficiente para custear os advogados que os defenderão. Quanto ao peso na consciência, prefiro nem comentar, pois na mente dos lógicos trata-se de algo impagável.

    O que ocorreu em Santa Maria foi uma tragédia patrocinada por conhecido confronto verbal. Os donos da boate pensaram apenas em ter mais no bolso e na conta bancária, nada além disso. Os frequentadores focaram na ideia obtusa de que era preciso estar lá para evitar a exclusão social. Concordo que é na juventude que nos divertimos com mais tranquilidade e folgança, mas na cidade gaúcha mais de duas centenas de pessoas interromperam a própria diversão, a juventude, a alegria de viver, a própria vida e a de cada um dos parentes, que mesmo vivos conviverão com o viés da morte.

    Balada com um número seguro de pessoas não serve, não tem futuro. Esse é o conceito que gravita na órbita dos jovens de hoje. Quanto mais gente, melhor. Balada boa é aquela que “bomba”. E “bombar” significa agitação de muita gente em espaço inversamente proporcional. Mesmo que isso desafie Isaac Newton. Tanto é assim, que em São Paulo, por exemplo, há promotores de festas que usam as redes sociais para entupir baladas. E esses promotores de eventuais tragédias ganham dinheiro fazendo com que dois ou mais corpos distintos ocupem o mesmo lugar.

    O lado sórdido da ganância, que é burramente sustentada por padrões sociais absurdos, ficou por conta dos donos da boate, que durante o incêndio ordenaram o fechamento da porta principal para que os jovens não deixassem o local da tragédia sem pagar o que consumiram. Em outras palavras, o inferno se instalou na boate de Santa Maria, mas os donos do local tentaram evitar qualquer tipo de ardência nos respectivos bolsos. É o velho dito popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

    Em temporada de escassez de notícias, a tragédia santa-mariense já está sendo explorada pelos meios de comunicação de forma covarde e oportunista. Enquanto os repórteres dos telejornais transformam a redação e o cenário do jornalístico em usina de conjecturas, com direito a especialistas nisso e naquilo, os donos das emissoras estão de olho nos índices de audiência, o que significa dinheiro em caixa. Situação idêntica ocorreu logo após o acidente com o Airbus da Tam, que derrapou na pista do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, chocando-se com um terminal de cargas da companhia aérea, ocasião em que morreram 199 pessoas. Instantes depois da tragédia, cujas causas até hoje são desconhecidas verdadeiramente, cada veículo de comunicação tinha uma notícia exclusiva, um furo de reportagem.

    No momento de dor não há exclusividade de notícia, não há furo de reportagem. Manda a ética do jornalismo – por isso Sociologia faz parte do currículo – que em casos como o de Santa Maria o importante é respeitar os mortos e as famílias das vítimas. Compreender o que acontece, analisar os fatos com parcimônia e noticiar com equilíbrio e sem sensacionalismo. De nada adianta lançar balões de ensaio aqui e acolá, fazendo com que familiares enlutados sofram mais ou alimentem uma esperança que não existe. A vida do ser humano vale muito mais do que uma notícia, a dor de um familiar é infinitamente maior que uma manchete.

    Não pensem os leitores que abandonei a tristeza para escrever um artigo sobre a maior tragédia do Rio Grande do Sul, mas fui duro e objetivo em vários trechos porque é preciso evitar que novas vidas sejam consumidas pelo fogo do ter.

    Muitos dirão que estou velho e sou careta, mas não me importo com críticas dessa natureza. A esses dou o direito de pensar livremente, pois no momento, mesmo que em pensamento e orações, abraço emocionado cada um dos que não mais verão os filhos que foram à balada.

    Autoridades envolvidas na investigação apontarão os culpados pelo acidente, até porque é o que determina a lei. Mas é importante reconhecer que a culpa maior é de um comportamento social desmedido e ilógico, que permite que uma conta de boate se transforme em atestado de óbito.