São Paulo, 460 anos: ame-a ou deixe-a!

    (*) Ucho Haddad –

    ucho_20Inexplicável em todos os sentidos e meandros, São Paulo tem sua importância descoberta quando se está distante do que costumo chamar de receita do impossível. Sobreviver na Pauliceia Desvairada não é tarefa fácil, mas é garantia de sobrevivência em qualquer parte do planeta. Talvez até em outro planeta, tamanha é a quantidade de gente doida que vive nessa locomotiva nacional. Longe de ser um hospício a céu aberto, a cidade é o divã que falta na vida de muitos. Mas é preciso cuidado para não endoidar de vez.

    Fincada de alguma forma no coração de cada brasileiro, São Paulo é a alma da nação. Oração profana, sacerdócio do devaneio. Rima mais que poética, Sampa é a estrofe que não acaba, o eterno projeto sem fim. Equação teimosa do absurdo, avesso do avesso. Mesmo que preciso seja o caminhar do relógio, ser paulistano é estar eternamente atrasado. Por aqui o presente é sempre passado, porque hoje já é amanhã. Assim move-se o monstro de concreto que é a face real do abstrato.

    Adeus à terra natal foram muitos, sempre em busca do novo e do diferente, do melhor e da paz, mas tudo se transformou em até logo. Afinal, em São Paulo encontrei a razão de viver. No casto cenário, que se esparrama no horizonte em progressão geométrica, estão minhas raízes, mora a sensação de que voltar sempre vale à pena. Em Sampa estão os motivos mais íntimos, todos os amores, cada um dos temores. Na dificuldade cotidiana coloco em xeque a fé, porque aqui não se vive sem ter a esperança a tiracolo.

    Terra de bamba, receita própria de samba. Em Sampa o amador não tem vez, porque é preciso ser bom para estar com. Do contrário fica-se sem. No caldeirão de gente, desvario é coisa para louco profissional. Em Sampa não existe meio termo, não tem meia palavra, não se contempla meio grávida, não se bate palma pra meio maluco dançar. É tudo ou nada! Carrossel da vida, Sampa tem bola de meia, tem casa cheia, até sobra peia.

    Cenário do reverso, Sampa é a materialização do desafio. Na vastidão de suas esquinas, na elegância nada discreta de suas meninas, São Paulo é recitada em verso, é declamada em prosa. Trem das onze, São Paulo é o passaporte do amanhã, é o preâmbulo poético do Jaçanã. Côncava e convexa, a cidade é a geometria da imaginação. Aqui tudo pode, aqui tudo tem. Aqui tudo sonha-se, aqui tudo faz-se. Erra-se, acerta-se, vence-se, pira-se.

    Palco do grito, coxia da independência, São Paulo… Enxurrada de oportunidades, ilha de equívocos, Sampa… Foi nesse conhecido tabuleiro do inusitado que descobri a receita do milagre de ser paulistano. Coquetel de privilégio com despautério, São Paulo é um caso de amor sem solução. Quem conhece não quer largar, quem convive quer fugir. Idas e vindas, a fidelidade vai além da certidão de nascimento. Quem em Sampa nasceu carrega a cidade no coração, no pensamento, na fala, no olhar, na ação… Não importa se aqui ou acolá, Sampa é mutante, amante, pura e devassa. Acolhedora, traidora, mãe, madrasta.

    Lupanar de sonhos, catedral do sabor. Tudo funciona de um jeito único, sem explicação, mas com razão. Em Sampa o falso é por vezes tão verdadeiro, que fica difícil saber quem é quem, o que é o que. Pode ser a bolsa do camelô, a frasqueira da butique, a amizade sólida, a inveja tórrida. De longe a cidade é um todo incompreensível, de perto é cada um por si. Paraíso da coerência, reino da lógica. Sampa…

    São Paulo é a alquimia do incompreensível. Cidade de muitos pratos, de todos os paladares, deixa qualquer um perdido diante de cardápio tão vasto, tão insano. A dúvida leva à mesmice de sempre, cultua a fidelidade preguiçosa. Em Sampa não se tergiversa, não se embola. Não se pisa na bola, não se joga conversa fora. Aqui é papo sério, é papo firme. Aqui tem de tudo um pouco, tem até o que não tem. Tem, como tem. Tem para todos os gostos, até pra quem não gosta.

    Em São Paulo tem pessoas, tem gente, o que é diferente. São Paulo é diferente sendo sempre igual, sempre. São Paulo é Sampa e vice-versa. É verso, prosa, poesia, declaração, paixão, loucura, fissura, amor, sexo… É tudo, é nada. É Sampa, é rá-tim-bum!

    (*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.