Quando o jornalismo ignora a essência da ética e se iguala ao vilipêndio ao cadáver

(*) Ucho Haddad –

ucho_25Mais um acidente aéreo. Desta vez com uma figura pública, um político conhecido. O desfecho é a morte. De novo entra em cena a repugnante e desumana indústria do furo de reportagem, da notícia exclusiva, do exercício do “achismo”. Como se a dor que emana de uma tragédia pudesse ser refém da informação exclusiva. De uma hora para a outra a imprensa brasileira transforma-se em celeiro de especialistas em determinado assunto. Todo mundo sabe sobre o tema, a ponto de levar o incauto cidadão a acreditar que tudo é verdade. Mas muito do que se noticia não passa de mera especulação.

Durante anos a fio fui acusado de ser um falso jornalista apenas porque não tive a oportunidade de colocar no fundo do armário um canudo aveludado com um pedaço de pergaminho recheado de letras góticas e com a inscrição diploma universitário. Acusavam-me de desconhecer o significado da ética, pois afinal de contas não havia esquentado o banco da escola. Depois de tudo que vi e vivi ao longo de mais de trinta anos de profissão, só me resta agradecer aos céus e dizer: que bom que não perdi meu tempo correndo atrás de um canudo apenas para aprender o que é ética. Isso o meu pai – que começou a vida como um reles engraxate e dela despediu-se na esteira de um acidente aéreo – me ensinou com invejável competência.

A notícia sobre o acidente com o avião que transportava o presidenciável Eduardo Campos ainda repercutia em todo o País quando começaram a surgir as primeiras ilações jornalísticas. Daquele momento em diante passou a reinar a guerra pela audiência, pelo maior número de leitores, pelo crescimento das “curtidas” nos posts publicados nas redes sociais. Sobravam, como ainda sobram, afirmações criminosas e oportunistas. A esses bandoleiros da comunicação pouco importa a dor dos familiares das vítimas. O importante é ouvir o tilintar da caixa registradora. Mais audiência significa mais dinheiro. Dentro dos padrões da ética midiática, que por sorte desconheço, é permitido faturar aos bolhões diante de um cadáver.

A obrigação por uma informação dita exclusiva é algo tão degradante, que até mesmo um cipoal de absurdos rende notícias. Isso é o que se pode chamar de ética. Jornalistas experimentados ousaram levar ao ar depoimentos esdrúxulos que nem mesmo uma criança seria capaz de acreditar. Bombeiros, policiais e legistas avançaram na madrugada desta quinta-feira, 14 de agosto, à procura de pedaços dos corpos das sete pessoas que morreram na queda do avião, mas instantes após o acidente surgiram oportunistas de todos os naipes. Desde os que garantem que uma bola de fogo sobrevoou o céu da cidade de Santos, antes da tragédia, até os que viram o corpo de Eduardo Campos intacto.

Que no planeta sobram loucos por todos os lados não é novidade, mas é preciso saber o que entende sobre ética o jornalista que leva ao ar uma entrevista em que um tresloucado qualquer afirma ter aberto os olhos de Eduardo Campos e constatado que os mesmos eram verdes. Possivelmente porque isso é jornalismo responsável e ético. Não há outra explicação. Mas o festival de sandices midiáticas não parou por aí. Como nas reticências de uma tragédia a ordem é tirar uma casquinha, enquanto meia dúzia fatura como pode, um jornalista deu ouvidos a outro amalucado, que na sequência do clarão provocado pela queda da aeronave mergulhou e ficou três minutos debaixo d’água. Um recorde digno de registro no Guiness Book.

Na proa dessa nau do descaso está o conglomerado de comunicação comandado pela família Marinho. A Vênus Platinada e todos os seus penduricalhos comunicativos têm se dedicado, desde instantes após o acidente, a querer descobrir o que ocasionou a tragédia. Assim como no Brasil existem perto de 200 milhões de técnicos de futebol, no reino dos Marinho há mais especialistas em aviação do que aviões no Brasil. Eis a receita para um jornalismo ético e de qualidade.

O mais bizarro nessa epopeia é a disposição dos jornalistas “globelezas” para destruir marcas consagradas no momento de um acidente. Quando nada de extraordinário acontece no cotidiano em termos de informação, a emissora leva ao ar suas matérias sem qualquer menção a marcas e nomes de empresas. Até porque, no “universo global” isso só acontece mediante pagamento. É o tal do merchandising. No momento de uma tragédia como a que matou Eduardo Campos e outras seis pessoas, a emissora não se esforça para esconder marcas, a exemplo do que faz em reportagens e entrevistas. Em meio ao lamacento turbilhão de informações baseadas no “achismo”, alcançadas foram as marcas da fabricante da aeronave e da empresa de fretamento aéreo que apenas se incumbiu de fazer o preâmbulo do voo. Esse tipo de comportamento condenável já foi objeto de muitas críticas de minha parte, mas esses proxenetas da informação parecem não se emendar. Querem faturar a todo tempo, inclusive quando reputações por eles combalidas precisam ser resgatadas.

Mas esse comportamento esdrúxulo e condenável não é exclusividade da “Velha Senhora” da televisão brasileira. Outros veículos de comunicação também dotam esse modus operandi na busca pelo inusitado, pelo exclusivo, pelo furo de reportagem. Há jornais que mantêm em seus quadros jornalistas que inventam entrevistas, há outros que incensam profissionais que chamam de loucos os profissionais concorrentes que saem à frente com alguma informação. Certa feita, por ter focado meus esforços na direção de um banqueiro oportunista, fui chamado de esquizofrênico. Acusavam-me os geniais herdeiros de Gutenberg de ter inventado um inimigo para com ele guerrear diariamente. Quando o tal banqueiro foi preso, limitaram-se, depois de alguns dias, a pedir desculpas. Certo de que não sofro de esquizofrenia, limitei-me a ter pena de um jornalista diplomado incompetente e que vive à sobra de um livro fracassado e que não sai das prateleiras das livrarias.

Voltando à tragédia que tirou a vida de Eduardo Campos, dos integrantes da sua equipe de campanha e dos dois pilotos, manterei a coerência e o respeito aos familiares, que nesse momento devem estar divididos entre a dor descomunal e os pensamentos para supor o que aconteceu nos minutos finais antes da queda da aeronave. O que a imprensa brasileira vem fazendo é torturar as famílias com informações descabidas e que não passam de meras suposições, obras do “achismo” boquirroto que domina essa barafunda chamada Brasil.

O mais interessante é que esses mesmos veículos de comunicação, escorando-se sobre o jornalismo supostamente ético, evitam emitir opiniões mais aprofundadas sobre fatos concretos, como, por exemplo, o caos na economia, os seguidos escândalos de corrupção, o superfaturamento de obras. Quando o fazem é pela necessidade de conseguir uma manchete para o dia seguinte. Na sequência deixam de lado não apenas o assunto em si, mas uma nação desprotegida e que continua a ser corroída pelos desmandos dos governantes.

A esses rufiões da notícia, assíduos frequentadores dos bataclãs da informação, deixo uma célebre e lapidar frase de Oscar Wilde: “Os loucos às vezes se curam. Os imbecis nunca”.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

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