O direito do consumidor: ainda um problema de memória

(*) Rizzatto Nunes –

rizzatto_nunes_04O Código de Defesa do Consumidor (CDC) está em vigor há mais de 23 anos! Não é pouca coisa, mesmo levando-se em consideração nossa cultura da “lei que pega e que não pega”. Até porque, na hipótese, trata-se de lei que pegou. A lei é mesmo de proteção, mas não implica nenhum prejuízo aos fornecedores. Muito ao contrário, como tenho insistido aqui neste espaço: o cumprimento de suas regras faz bem para os negócios; gera melhores produtos e serviços e novos clientes; estes se tornam fieis; enfim á favorável ao desenvolvimento das empresas e do mercado de consumo. O CDC prega a harmonização das relações entre fornecedores e consumidores.

De todo modo, há algumas normas que diferem daquelas do direito privado tradicional. E, tendo em vista que em alguns casos, apesar da passagem do tempo, isso ainda não é claro, eu volto ao assunto. Especificamente o da noção não prevista na norma consumerista do famoso brocardo latino pacta sunt servanda.

Neste tema, um dos problemas está atrelado àquilo que chamo de força da memória: grande parte dos operadores do direito que militam atualmente foram formados na tradição privatista larga e profundamente estudada a partir do Código Civil de 1916 e também das demais normas, penais e processuais. Quando se dirigem ao contrato para fazer um exame de suas cláusulas os elementos mnemônicos se impõem e os fazem lê-las como se fossem um texto escrito e firmado aos moldes do regime privatista. E, pior: o que é uma virtude no CDC, sua generalidade e seu modo normativo principiológico, acaba sendo um entrave para o operador jurídico formado no antigo modelo privado. A simples leitura do texto da lei consumerista não é suficiente para sua compreensão.

Uma retrospectiva histórica permite que se entendam as modificações operadas nos contratos, que acabaram desembocando naqueles típicos de consumo. Vejamos.

A lei 8078/90 entrou em vigor em 11-03-1991. O vetusto Código Civil entrou em vigor em 1917, fundado na tradição do direito civil europeu do século anterior.

Pensemos num ponto de realce importante: em relação ao direito civil, pressupõe-se uma série de condições para contratar, que não vigem para relações de consumo. No entanto, durante praticamente todo o século XX no Brasil, acabamos aplicando às relações de consumo a lei civil para resolver os problemas que iam surgindo e, por isso, o fizemos de forma equivocada. Esses equívocos remanesceram na nossa formação jurídica, ficaram na nossa memória influindo na maneira como nós enxergamos as regras de consumo, e, atualmente, temos alguma dificuldade para interpretar e compreender o texto da lei que é bastante enxuto, curto, que diz respeito a um novo corte feito no sistema jurídico, e que regula especificamente as relações que envolvem os consumidores e os fornecedores.

O CDC, apesar de atrasado no tempo, acabou tendo resultados altamente positivos, porque o legislador, isto é, aqueles que pensaram na sua elaboração, trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor.

Olhemos, então, um pouco para o passado. Uma lei de proteção ao consumidor pressupõe entender a sociedade a que nós pertencemos. E esta sociedade tem uma origem bastante remota. Para o que aqui interessa, parto do período pós-Revolução Industrial. Sinteticamente, se pode dizer que, com o crescimento populacional nas metrópoles, que gerava aumento de demanda e, portanto, uma possibilidade de aumento da oferta, a indústria em geral passou a querer produzir mais para vender para mais pessoas (o que era e é legítimo). Passou-se então a pensar num modelo capaz de entregar, para mais pessoas, mais produtos e mais serviços. Para isso, criou-se a chamada produção em série, a “standartização” da produção, a homogeneização de produtos e serviços.

Essa produção homogeneizada, “standartizada”, em série, possibilitou uma diminuição profunda dos custos e um aumento enorme da oferta, indo atingir, então, uma mais larga camada de pessoas. Este modelo de produção deu certo e foi crescendo na passagem do século XIX para o século XX; a partir da Primeira Guerra Mundial teve um incremento, e na Segunda Guerra Mundial se solidificou.
A partir da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da tecnologia de ponta, do fortalecimento da informática, do incremento das telecomunicações, a melhoria dos transportes etc., o modelo se fortaleceu ainda mais e cresceu em níveis extraordinários. A partir da segunda metade do século XX, esse sistema passou a avançar sobre todo o globo terrestre, de tal modo que permitiu que nos últimos anos se pudesse considerar a noção de globalização.

Temos, assim, a sociedade de massa. Dentre as várias características desse modelo, destaco o ponto em exame: a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas. A ideia é ter um custo inicial para fabricar certo produto, e depois reproduzi-lo em série. Assim, por exemplo, planeja-se uma caneta esferográfica única e se a reproduz milhares, milhões de vezes.

Quando a montadora resolve produzir um automóvel, gasta certa quantia em dinheiro na criação de um único modelo, e depois o reproduz milhares de vezes, o que baixa o custo final de cada veículo, permitindo que o preço de varejo possa ser acessível a um maior número de pessoas.

Esse modelo de produção industrial pressupõe planejamento estratégico unilateral do fornecedor, do fabricante, do produtor, do prestador do serviço etc. Ora, esse planejamento unilateral tinha de vir acompanhado de um modelo contratual. E este acabou por ter as mesmas características da produção. Aliás, já no começo do século XX o contrato era planejado da mesma forma que a produção.
Não tinha sentido fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores. Na verdade quem faz um produto e o reproduz vinte mil vezes também faz um único contrato e o reproduz vinte mil vezes. Ou, no exemplo das instituições financeiras, milhões de vezes.

Esse padrão é, então, o de um modelo contratual que supõe que aquele que produz um produto ou um serviço massificado planeja um tipo de contrato que veio a ser chamado pela Lei n. 8.078 de contrato de adesão. Aliás, lembro que a primeira lei brasileira que tratou da questão foi exatamente o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 54. E por que o contrato é de adesão? Por uma característica evidente e lógica: o consumidor só pode aderir. Ele não discute cláusula alguma. Para comprar produtos e serviços, o consumidor só pode examinar as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor e pagar o preço exigido, dentro das formas de pagamento também prefixadas.

Este é, pois, o modo de produção contemporâneo. E eis o problema: apesar disso, nós aplicamos, no caso brasileiro, até 10 de março de 1991, o Código Civil às relações jurídicas de consumo. Isto gerou problemas sérios para a compreensão da própria sociedade.

Passamos a interpretar as relações jurídicas de consumo e os contratos com base na lei civil, inadequada para tanto, e como isso se deu até a penúltima década do século XX, ainda temos dificuldades em entender o CDC em todos os seus aspectos. E, na questão contratual, nossa memória privatista impõe que, ao lermos o contrato, pensemos pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características contratuais, com fundamento na autonomia da vontade.

Ora, sabe-se que nas relações contratuais no direito civil, pressupõe-se que aqueles que querem contratar sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo num pedaço de papel. São proposições organizadas em forma de cláusulas que, impressas num pedaço de papel, fazem surgir o contrato escrito. É a tentativa de delineamento objetivo de uma vontade, portanto, elemento subjetivo.

É a escrita posta no contrato, o que o direito civil tradicional pretende controlar. Então, quando nos referimos às relações contratuais privatistas, estamos fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, o pacto deve ser respeitado.

Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais. Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC passou a controlar, e de forma inteligente. O problema é que a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do direito, atrapalha a interpretação.

Então esta era, foi e ainda é uma situação que acabou afetando o entendimento da lei. Se não atentarmos para esses pontos históricos do fundamento da sociedade contemporânea, ainda teremos muita dificuldade de interpretar aquilo que a lei 8078/90 regrou especificamente.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PU-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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