Nem sempre o futuro é imprevisível e incerto

(*) Rizzatto Nunes –

rizzatto_nunes_04O herói grego é trágico porque pretende lutar contra as forças do destino e como, por mais que faça, não consegue vencê-lo, ao final dá-se a tragédia…

Será possível vencer o destino?

Nós costumamos descrever e aceitar certos acontecimentos como uma fatalidade, como algo inevitável, que havia mesmo de ocorrer, fizesse o que se fizesse. Não se faz greve ou passeatas contra as tempestades e catástrofes climáticas (embora se façam danças para que chova…). Não há movimentos sindicais contra tufões, furacões ou erupções vulcânicas. A natureza simplesmente se impõe. E o ser humano se protege como pode.

Já contei aqui. Gabriel Garcia Marques, com a maestria de sempre, escreveu “Crônica de uma morte anunciada” mostrando essa faceta da inevitabilidade. O assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario – para vingar a honra da irmã Angela – é conhecido de antemão pelos habitantes do local, mas ninguém faz nada para evitá-lo. O crime ocorre como uma fatalidade, mas das coisas humanas.

Em relação à fatalidade dos eventos naturais, nós, aqui por nossas terras tupiniquins, o que fazemos? Será que todas as tragédias que advém das condições climáticas são inevitáveis? Vou melhorar as perguntas: o que fazem as autoridades constituídas em relação ao conhecido problema? Elas exercem seu mister a partir de decisões que envolvam prioridades? Escolhem as obras que devem fazer nas cidades pensando na proteção da população e de seus bens?

Antes de prosseguir, devo lembrar que não estou me referindo a erupções vulcânicas imprevisíveis nem terremotos que só podem ser detectados minutos antes; estou falando de chuvas facilmente aguardadas no ciclo anual e de inundações recorrentes que poderiam ser evitadas se as obras públicas fossem efetuadas a contento. Apenas isso. Obras públicas e, claro, prioridades. Quem assistiu aos noticiários dos últimos dias ou leu as matérias publicadas sobre a cidade de São Paulo, viu e leu relatos de moradores dizendo que tudo se repete, ano após ano; solução existe, tanto que as promessas de obras são feitas, mas nunca executadas; até as instalações do São Paulo Futebol Clube no Morumbi sofrem todos os anos, sem que as promessas apresentadas sejam cumpridas etc. etc. (até o etc. se repete…).

Como diz meu amigo Outrem Ego: “Assistindo aos estragos causados pelas chuvas dos últimos dias, com inundações, quedas de árvores, paredes, casas, perdas de bens e de vidas, fica claro que a prioridade não é a segurança das pessoas”.

Realmente. Há uma enorme diferença entre discurso e realidade, entre preferências e prioridades; não dá mais para ficar culpando São Pedro pelos estragos.

Sabe, caro leitor, se eu quisesse, poderia deixar pronto um artigo escrito para usar todo início de ano cuidando das enchentes, dos desmoronamentos, dos mortos e feridos e do abandono anterior e posterior das ruas, cidades e pessoas, enfim do descaso das autoridades para com a população. Repetir sempre a mesma ladainha é – com o perdão da expressão – chover no molhado. Mas, que alternativa tenho eu? Isto é, que alternativa temos todos nós que, de alguma maneira, nos preocupamos com o direito das pessoas?

Sou obrigado a vir nesta coluna mais uma vez falar dessa tragédia anunciada que, infelizmente, não apresenta nenhuma perspectiva de deixar de acontecer novamente nos próximos anos.

Um outro dado bastante assustador, chama a atenção: aos poucos e até bem rapidamente, as desgraças desse tipo deixam o noticiário. O tempo melhora e as pessoas prejudicadas são esquecidas (voltarão, claro, no próximo ano…). As mortes desaparecem e quando muito ganham uma notinha de rodapé aqui e acolá. Às vítimas e seus parentes vai sobrando um certo abandono jornalístico, largados à sua própria condição solitária de dor; posteriormente, talvez recebam uma nota ou outra sobre o resultado de investigações e a respeito do andamento das ações judiciais de indenização. É que a vida continua, como dizem.

Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor – embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um apanhado dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado.

Segue, assim, abaixo, um resumo dos direitos envolvidos, que já publiquei nesta coluna mais de uma vez.

A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes, desmoronamentos, quedas de árvores etc.

Responsabilidade civil objetiva

A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis.

Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc.

Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização.

Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima

Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos.

A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir como, por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e também pela vítima.

Pensão e outros danos materiais

As vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que, convalescentes, tenham ficado impossibilitadas de trabalhar. Do mesmo modo, os familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela tinha em vida.

Além da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos, serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas, cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e fazer seu traslado, despesas com o funeral etc.

Danos morais

Tanto a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que, no caso, dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo.

De todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever de dar toda assistência às vítimas e seus familiares, inclusive propondo o pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada, poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo.

Na verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer, encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer retornar, pois, ao “status quo” anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor. É um elemento de igualdade, portanto.

Já a “indenização” por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos nas vítimas sobreviventes. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto material e ao mesmo tempo punição ao infrator.

Assim, o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor haverá uma atenuante para fixar o “quantum” indenitário em menor valor.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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