Se a Eurocopa fosse música, a conquista de Portugal seria um fado com doses de Vila Morena

(*) Ucho Haddad

ucho_24Há muito uma partida de futebol não me prendia à poltrona com tanta convicção e emoção, como fez o esquadrão comandado por Cristiano Ronaldo. Desde 1982 não mais torço pela seleção brasileira, ciente de que naquele momento havia feito o melhor. E até hoje não me arrependo da decisão tomada, a que muitos chamam de antipatriotismo. Refém da coerência, o que me faz bem, continuo não torcendo pelo “onze canarinho”. Aliás, torço deliberada e publicamente contra.

Certa feita, o polêmico e contundente Nelson Rodrigues disse que a seleção é a pátria de chuteiras. Na ocasião, Nelson Rodrigues também deu espaço à pequenez da alma verde-loura ao falar sobre o “complexo de vira-latas”. O tempo passou e, mesmo discordando do dramaturgo, concordo com a tese da “pátria de chuteiras”. Sobre o complexo, resta-me dizer que ainda sobram muitos vira-latas.

A seleção lusa não venceu a Eurocopa 2016 por acaso. Foi um longo processo de maturação, assim como acontece nas letras dos mais viscerais fados. A conquista foi sofrida, assim como é a música que tão bem representa a terra de nossos irmãos. Melancólica, difícil, brigada, sofrida, um sussurro melodioso e choroso que vem além d’alma.

O destino quis assim, que Portugal erguesse a taça na casa dos anfitriões, calando uma torcida que não conseguiu despejar sobre a relva do “Stade de France” a ordem de guerrear que a Marselhesa impõe. Ademais, fado vem do latim “fatum”, ou seja, destino. Sendo assim, o resultado não poderia ser outro. Vencidos os acordes acres da luta, da maldição dos adversários, da torcida contrária, prevaleceu o destino, o “fatum”, o fado.

Muito além de derrotar a seleção francesa – que ao final do combate não mais ouviu o costumeiro grito de guerra “Allez les Bleus” – os portugueses sepultaram um preconceito burro que ainda reinava na Europa: o de que Portugal funcionava como mera porta de entrada do Velho Mundo. Como se o esporte bretão fosse um embaixador-geral, o nome de Portugal gravado na taça da Eurocopa é o começo do fim. E Portugal, muito além de porta de entrada, é lugar para se ficar.

“Hoje temos mais razões para acreditar em Portugal”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente português, ao recepcionar a “seleção das quinas” no Palácio de Belém. O português em si é a razão maior para se acreditar em Portugal. Somente quem nunca compreendeu o povo português é que sempre desdenhou Portugal. “A diferença foi o vosso exemplo, o exemplo da coragem, da determinação, do espírito de luta e de equipa”, disse o presidente da República de Portugal.

Português que é, Marcelo Rebelo de Sousa foi redundante, ao mesmo tempo em que ignorou a receita existencial do povo que hoje está sob sua batuta. Coragem, determinação, espírito de luta e de equipe são sinônimos de português. E aquele que nascido na terra de Camões assim não for, por certo é um acidente de percurso nas plagas lusas.

Como mencionei anteriormente, nada acontece por acaso, fora da rota do destino. Assim como cada fato ocorre em seu tempo. A recente história de Portugal pode ser contemplada e analisada em alguns atos: a ditadura salazarista, a Revolução dos Cravos – com direito à libertária “Grândola Vila Morena” (canção de Zeca Afonso) – a crise europeia de 2008 e o pós-crise.

Em terras portuguesas estive em três dessas quatro fases. Durante a ditadura truculenta de António de Oliveira Salazar, após a Revolução dos Cravos e depois da crise europeia. E faço minhas as palavras do presidente Marcelo Rebelo de Sousa proferidas no Palácio de Belém nesta histórica segunda-feira, 11 de julho: “O dia de hoje não é igual ao dia de ontem”.

Quase proféticas, as palavras do presidente português caem como fina luva sobre todas as fases mencionadas: no alívio que representou o fim do autoritarismo salazarista, na enxurrada de esperança que trouxe a Revolução dos Cravos, na enorme lição que deixou a crise de 2008, na importante e profunda mudança provocada pela crise econômica europeia.

Hoje não tem como ser igual a ontem. Assim como Portugal não é mais o mesmo país. Mudou e para muito melhor. Palavra de quem lá esteve algumas vezes ao longo desses históricos cinquenta anos. Os portugueses não são mais os mesmos. Estão melhores, mais fraternos, conscientes, amáveis, receptivos. Mas continuam os mesmos de sempre: corajosos, determinados, lutadores. Continuam portugueses na essência, ora pois!

A conquista da Eurocopa 2016 aconteceu na hora certa, pois Portugal não apenas merecia esse título, mas estava maduro – e assim continua – para tanto. A mudança que brotou das dificuldades trouxe um amadurecimento que tem ingredientes de sobra para ser perene. Os portugueses mereciam e merecem essa vitória. Como se festa de gala fosse, estavam todos a caráter prontos para o matrimônio com o triunfo.

Como brasileiro, aos “irmãos” nascidos na terra de Fernando Pessoa empresto Nelson Rodrigues, pois a seleção lusa mostrou na ponta de cada chuteira que ser português é lutar, ter fé, desafiar a mesmice, vencer o imponderável.

Nos arrabaldes parisienses, o pomposo “Stade de France” transformou-se em uma casa portuguesa, com certeza! Foi sofrido, é claro, mas não poderia ser diferente, pois assim é o destino, assim é o fatum, assim é o fado.

Ao final, taça de mão em mão, prevaleceu a razão de um povo que sempre valeu-se da garra para ultrapassar obstáculos. Os filhos do fado, com ou sem a camisola da “seleção das quinas”, com mais fervor entoaram: “Saudai o Sol que desponta / Sobre um ridente porvir / Seja o eco de uma afronta / O sinal do ressurgir / Raios dessa aurora forte / São como beijos de mãe / Que nos guardam, nos sustêm / Contra as injúrias da sorte”.

Contudo, como se – do Faro a Ourique, de Lisboa ao Porto, de Fátima a Belém, do Douro ao Minho, da Madeira aos Açores, do 25 de Abril ao 10 de Julho – Portugal fosse a Vila Morena, prevaleceu o âmago da canção de Zeca Afonso, que anuncia a “terra da fraternidade”, exalta “o povo é quem mais ordena”, mostra “em cada esquina, um amigo, em cada rosto, igualdade”.

Vai Portugal, “levantai hoje de novo”, prometido epílogo da minha existência!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

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