De como recusei conhecer Castro

(*) Ipojuca Pontes

ipojuca_pontes_14Por ter denunciado a corrupção da cultura oficial brasileira em artigos publicados no jornal “O Estado de São Paulo”, em 1989, e ainda por ser do ramo, fui convidado pelo presidente eleito Collor de Mello para ocupar a pasta da Cultura. Collor vivia o furor da queda do Muro de Berlim e testemunhara a vigorosa ação de Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, à frente do governo britânico, privatizando estatais, quebrando a espinha dorsal do sindicalismo corrupto e promovendo, enfim, a desregulamentação da emperrada economia inglesa.

Aceitei o convite de Collor e, na manhã de 15 de março de 1990, fui a pé, com os demais ministros, do Palácio do Planalto ao Congresso Nacional, para participar da cerimônia de posse do homem que derrotara, sem dó nem piedade, o santificado Lula e toda a comunalha petista.

O discurso de posse de Collor foi admirável. Ele anunciava, entre outras medidas, diminuir o tamanho do Estado, fechar estatais, cortar salários astronômicos, promover a desregulamentação e modernizar o país viciado em confundir os limites entre o patrimônio público e o patrimônio privado (este, gerador do velho patrimonialismo tupiniquim, fenômeno estudado por Raymundo Faoro em “Os Donos de Poder”).

Foi uma posse marcante, digna da melhor euforia, até que, de repente, surge a figura cavalar de Fidel Castro Ruz, atravessando, ostensivo, o plenário do Congresso, enfurnado numa farda bege de comandante militar. Sim, “El Caballo” (assim chamado entre asseclas) atraia as atenções gerais. Fiquei perplexo. Pensei: o que fazia ali na posse de um presidente eleito pelo voto popular um ditador que reduzira o seu povo à completa vassalagem e conduzira Cuba à ruína? Pressenti que a coisa iria começar mal para o governo Collor de Mello.

Antes, é preciso explicar. Depois de conhecer Havana durante um festival de cinema, eu escrevera uma série de artigos no mesmo “Estadão” sobre o fracasso da revolução sanguinária comandada por Castro. Acusei-o de transformar Cuba no Gulag das Américas, tiranizando milhares e milhares de pessoas nas infectas prisões de La Cabana e Puerto Boniato e em campos de trabalhos forçados (tal como fez Stalin na antiga URSS e Hitler na Alemanha Nazi). Eu descrevia ainda, com riqueza de informações, o regime de penúria e fome que se abatia sobre o povo cubano, destroçado com a retirada da bilionária ajuda de Moscou – que, por sua vez, caia pelas tabelas.

Finda a posse de Collor no Congresso, deu-se o rega-bofe de praxe nos salões do Itamaraty. Corriam os comes e bebes, sorrisos e conversas amistosas entre incontáveis convidados. De repente, me aparece um xeleléu de Ítalo Zappa, baixote calabrês conhecido como “o embaixador vermelho”.

Locado em Havana, Zappa ficou famoso por preparar, ele próprio, de madrugada, na cozinha da embaixada brasileira, espaguete al dente para o deleite do Vampiro do Caribe. O xeleléu do diplomata, que conhecia meus artigos, se aproximou e fez o convite:

– O nosso embaixador em Cuba estimaria aproximar Fidel dos ministros da Educação, Saúde e Cultura e se sentiria gratificado em apresentá-los ao Presidente cubano…

Do nosso lado, a uns três passos de distância, brancoso e impávido, o ditador cumprimentava atento os “eleitos” previamente escolhidos pelo diplomata subserviente. Saí de perto, claro. E sereno, mas indignado, respondi em tom seco:

– Olha, não sei o caso dos ministros Chiarelli (Educação) e Alceni (Saúde), mas diz ao teu embaixador que o ocupante da pasta da Cultura não tem o menor interesse em conhecer Fidel Castro – e ele deve saber a razão.

Hoje, após a morte de Fidel, a camarilha cubana promove o desfile do cadáver (em cinzas) do ditador, numa badalação que vai atravessar, por nove dias, boa parte da ilha-cárcere. Os comunistas, para trombetear os mitos do regime, são chegados a esse tipo de exploração sórdida. (De minha parte, pensei que eles iriam embalsamá-lo para adoração pública como fizeram com o cadáver de Lênin, em Moscou).

No Brasil, a repercussão da morte do tirano foi mais badalada do que em Cuba. As figuras de sempre, apóstolos da mendacidade, teceram loas ao famigerado personagem. Afora Donald Trump, que o enquadrou como “tirano brutal”, quem se aproximou da verdade foi a escritora cubana Zoé Valdés. Ela disse:

– Fidel Castro ficará para a história como um gansgster que destruiu um país. Destruiu a alma e a cultura cubanas. Vinte e um por cento estão exilados. Assassinou um grande número de pessoas e aprisionou outras. Cometeu horrores. Entrará nesta parte nefasta da história onde estão Hiler, Stalin, Mussolini e Pinochet”.

Nada a discordar.

PS – Por ironia, depois que saiu da festa da posse, Castro viajou a São Paulo, onde, com Lula a tiracolo, recriou a antiga OLAS, com o nome de Foro de São Paulo, para impulsionar o comunismo na América Latina e tramar a queda do próprio Collor.

(*) Ipojuca Pontes, ex-secretário nacional da Cultura, é cineasta, destacado documentarista do cinema nacional, jornalista, escritor, cronista e um dos grandes pensadores brasileiros de todos os tempos.

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