Aos mestres, aos amigos

(*) Carlos Brickmann

… O desgaste só veio agora, no sábado, dia 21, quando Oliveiros S. Ferreira morreu, aos 88 anos. O cemitério, sem dúvida, está cheio de gente insubstituível. Mas quem poderia substituí-lo?

Minha carreira de jornalista foi abençoada pela sorte. Comecei numa época em que jornais e revistas disputavam o mercado e abriam suas vagas para quem se iniciava; em que ninguém se surpreendia ao ver que O Estado de S. Paulo de quinta-feira tinha 300 páginas; em que os jornais paulistas reconheciam sem problemas a superioridade do carioca Jornal do Brasil e lutavam para alcançá-lo – o que só se conseguiria com o Jornal da Tarde (e eu fui funcionário de ambos, nas melhores fases de cada um!).

Aos 18 anos de idade, trabalhava em empresas que lutavam para crescer e se equipavam para isso com os melhores profissionais que podia encontrar. Tinha, como colegas, como chefes, companheiros de farra e de bar, não apenas jornalistas de primeiríssimo time, mas gente com total disposição para ensinar aos focas os caminhos da imprensa e da vida.

Mais ainda, tínhamos conosco os monstros sagrados da informação: Alberto Dines, Nahum Sirotsky, Ewaldo Dantas Ferreira. Uma conversa com eles, uma reportagem a seu lado, e os bons caminhos se iluminavam.

A sorte que sorriu para a carreira dos jovens jornalistas não iria durar muito tempo. Aos poucos, as fardas foram toldando os horizontes. E identificar os múltiplos sinais captados nas redações, complexos e contraditórios, passou a ser essencial na reportagem. Nosso guru, tanto no O Estado de S. Paulo como no Jornal da Tarde, era um excelente jornalista capaz de desvendar, como professor de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo, como profundo conhecedor do pensamento militar, os rumos do Brasil: Oliveiros S. Ferreira, diretor de Redação de O Estado de S. Paulo, intelectual rigoroso e independente. E, apesar das desconfianças que provocava em todos os setores – para a oposição, era “amigo dos militares”, para os militares era trotsquista – tornava-se imperioso saber o que pensava. Sua filiação política?

Bobagem: Oliveiros tinha amigos na Esquerda Democrática, ala da UDN que desembocou no Partido Socialista Brasileiro, tinha amigos na Vanguarda Socialista, do trotsquista Mário Pedrosa, dialogava com Carlos Lacerda, o brilhante líder conservador. Oliveiros sempre pensou o que achava que deveria pensar.

E, na pior fase do regime militar, provou na prática que entendia de militares. O jornalista Fernando Morais assinava, no Suplemento Feminino do Estadão, uma coluna de “in” e “out” assinada com o pseudônimo Fernando B. Em determinado dia, Morais considerou “out” a primeira-dama Yolanda da Costa e Silva, esposa do ditador Arthur da Costa e Silva. A seção foi impressa – mas, antes da distribuição, foi assinado o Ato Institucional nº 5, a mais terrível página da ditadura brasileira. Em seguida, o jornal foi distribuído. E aquela coluna serviu para que os militares intimassem o jornalista a depor.

Oliveiros tranquilizou o pessoal: ele iria junto ao interrogatório. Na presença do inquisidor, Oliveiros explicou que, quando Morais chamou dona Yolanda de “out”, isso era permitido. Quando saiu, era proibido, mas o problema só tinha ocorrido por causa da demora na distribuição do jornal. Valeu! O inquisidor concordou, mas quis saber de onde o jornalista Fernando Gomes de Morais tirara o pseudônimo Fernando B.

Simples, mas para os militares seria complicado aceitá-lo. “B” vinha de “babaca”, termo nordestino que significava “xará”, mas que no Sul era palavrão. Oliveiros conhecia os militares: “B é de bobo. Na redação acharam que ele tem cara de bobo e o apelido pegou”. Morais saiu livre.

Trinta anos depois de deixar o Jornal da Tarde, encontrei o Oliveiros perto de minha casa (ele já estava aposentado há uns cinco anos). Foi um reencontro alegre, amigável; como de hábito quando estava com ele, mais ouvi do que falei, mais me informei do que passei informações. Nós dois sabíamos que, embora um não tivesse o endereço do outro, o afeto não sofrera, nem sofreria desgaste.

O desgaste só veio agora, no sábado, dia 21, quando Oliveiros S. Ferreira morreu, aos 88 anos. O cemitério, sem dúvida, está cheio de gente insubstituível. Mas quem poderia substituí-lo?

(*) Carlos Brickmann é jornalista e consultor de comunicação. Diretor da Brickmann & Associados, foi colunista, editor-chefe e editor responsável da Folha da Tarde; diretor de telejornalismo da Rede Bandeirantes; repórter especial, editor de Economia, editor de Internacional da Folha de S. Paulo; secretário de Redação e editor da Revista Visão; repórter especial, editor de Internacional, de Política e de Nacional do Jornal da Tarde.

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