Fé, consoada, reflexão e panetone – saudade de um tempo que infelizmente não volta

(*) Ucho Haddad

Então é Natal… Ao contrário da extensa e maiúscula maioria, não penso assim. Natal está dentro de cada um, não sobre a mesa repleta de gordices e embalada pela comilança. Não está debaixo da árvore adornada com bolas e outros penduricalhos, em meio a presentes, muito menos ao pé da chaminé. Natal é um momento ímpar, emoldurado pela fé, que acontece a cada instante da vida. Aliás, a vida por si só, em sua sequência misteriosa, revela a singeleza e a magia do Natal.

Presente de Natal é invenção do consumismo, que pegou carona nos mimos colocados pelos magos ao pé da manjedoura. Contradição é comemorar o nascimento de Jesus e receber presente sem que aniversário do presenteado seja. A vida, ao longo da estrada, ensinou-me a essência do desapego. Não fiz voto de pobreza, mas sou feliz com o que tenho, com o que foi possível conquistar. Se a vida pudesse ser embrulhada para presente, confesso desde já o desejo de ser o laço.

Infelizmente nem todos pensam assim. Creio que poucas pessoas entendem o Natal dessa maneira. Já passei várias noites de Natal sozinho, não por abandono, mas por opção. Foram noites de paz monumental. Precisava naqueles momentos refletir sobre a vida, sobre cada detalhe, sobre o todo. Sobre o ontem, o hoje e o amanhã. Já passei a noite de Natal doente, já passei viajando. Passei na missa do Galo, passei na padaria da esquina. Passei dormindo, passei agradecendo. Passei, com fé cheguei até aqui. Para mim, o ano tem 365 natais. Todo dia é dia, toda hora é hora.

Fechado que sou em termos pessoais, na noite de Natal encerro-me ainda mais dentro do meu eu. Assim faço por tudo o que acredito em termos de fé, esperança, busca pela paz, agradecimento e outros quetais. E porque sempre é Natal, repito esse ritual a todo instante. Faço do meu silêncio a melhor oração, o oráculo da reflexão, o genuflexório da fé.

Sou do tempo em que a noite de Natal era algo diferente do que acontece hoje. Lembro-me ainda, como se uma fotografia pulsasse na memória, do momento em que sentávamos à mesa para comemorar a mais esperada noite do ano. Silêncio respeitoso, fé desmedida, crença em dias igualmente bons, certeza da paz. Um panetone no centro da mesa era contemplado como prêmio, ao mesmo tempo em que impedia alguns olhares transversos durante a consoada. Hoje, se alguém ousar presentear outrem com um panetone será considerado sovina. Considera-se pouco o que tanto simbolismo tem.

Bons tempos eram aqueles que infelizmente não voltam mais. Creio que a vida é uma sequência de fatos, bons e não tão bons, mas o mundo atual existe debaixo de outra frequência. Se não tiver um pacotinho, um embrulho qualquer, uma lembrancinha (pero no mucho), não é Natal. Alegro-me com um gesto, com um telefonema que não seja para cumprir tabela, com abraço sincero, com votos verdadeiros.

Felicíssimo fico quando ganho um panetone, quando recebo de presente lenços de bolso. Sou da velha guarda e não saio de casa sem ter ao menos um no bolso. Afinal, nunca se sabe o que pode acontecer. Até hoje nada aconteceu de tão grave para que o lenço tivesse de entrar em ação, mas prefiro tê-lo no bolso da calça a não tê-lo por perto.

Há quem diga que felicidade o tempo todo é impossível, mas esse é o cenário do meu cotidiano. Até quando não dá para ser feliz consigo enxergar a presença da felicidade. Talvez porque acredito em algo maior, intangível, talvez porque o Natal do dia a dia é o motor da minha existência. Sou feliz, sou Natal o tempo todo, sou, simplesmente sou. Sejam assim, sejam felizes, sejam Natal. Sejam!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta e fotógrafo por devoção.

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