O Maquiavel do iê-iê-iê

(*) José Nêumanne Pinto

Num show em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, a orquestra executou os primeiros acordes de uma canção de muito sucesso desde os anos 1980, e o autor, Roberto Carlos, o rei do iê-iê- iê, permitiu-se uma introdução engajada. “Às vezes”, disse ele, “os fins justificam os meios. Meu carinho e meu respeito por todos os caminhoneiros que estão fazendo todo esse movimento. As causas que eles estão reivindicando com certeza não são causas só deles. São nossas causas. Meu abraço e meu carinho para esses nossos heróis caminhoneiros de todas as estradas. Para a gente realizar este show, por exemplo, temos o trabalho de caminhoneiros valentes. Caras que enfrentam coisas incríveis”. Em seguida, entoou os primeiros versos de uma canção de amor romântico descabelado, que tem tanto que ver com a saga “heroica” de seus personagens quanto a Marselhesa com a máquina de degolar do dr. Joseph-Ignace Guillotin.

O apoio de Roberto Carlos Braga, que era o alvo favorito dos engajados contra a ditadura militar por ser considerado o papa do estrelato “alienado” no Brasil, é algo a ser comemorado pelos “grevistas” das estradas como um feito realmente extraordinário. Até recentemente ele foi tão alheio a temas políticos que muitos atribuíam sua neutralidade suíça ao fato de se considerar realmente “rei” e, portanto, acima de meras querelas republicanas. Na verdade, imune a guerras que não dão lucro, como, por exemplo, pelos direitos humanos, ele sempre foi muito atento a causas que afetam seu patrimônio particular. Foi ao Senado com um grupo de estrelas defender a interferência estatal na atuação do Escritório Central de Arrecadação de Direitos (Ecad), na certa por sentir ameaçado seu naco no bolo autoral. Aderiu também à cruzada de famosos das artes para censurar biógrafos no mesmo Congresso Nacional, convencido de que incertos historiadores abelhudos não deviam ganhar rios de dinheiro à sua custa.

No ano passado, o prenome composto pelo qual ele zela muito, a ponto de processar para impedir o corretor imobiliário Roberto Cavalli de vender terrenos na praia do Conde, no litoral sul da Paraíba, usando as próprias iniciais, RC, foi citado falsamente em sites petistas. Segundo estes, ele teria dito no programa de Jô Soares que seria inaceitável o que está acontecendo com Lula e que o lugar do ex-dirigente sindical seria a Presidência da República. O portal boato.org desmascarou a fake news. Afinal, Jô não tinha mais um programa para chamar de seu e, ao contrário do que os apoiadores do petista disseminaram, o que se encontrou dele sobre a Lava Jato, cujas investigações já levaram Lula à cadeia após condenação em duas instâncias, foi chamar o juiz federal Sergio Moro de “maravilhoso”.

Agora o PT e a direita pitbull, que quer dois em um – Bolsonaro eleito presidente e intervenção militar – encontraram, enfim, uma declaração indiscutível em que novamente o criador da Jovem Guarda apoiou uma luta na qual a esquerda larápia e a direita truculenta se empenham com fervor. De verdade, o autor de Se Você Pensa meteu os pés pelas mãos. Sua homenagem aos heróis das redes sociais e novos veículos do “fora Temer” começa com o famoso lema comuno-fascista, que o georgiano Stalin viveu para confirmar no poder: “Os fins justificam os meios” – falsamente atribuído a Nicoló Maquiavel, conselheiro político, cujas pérolas da Realpolitik são populares há seis séculos.

Logo em seguida, Sua Majestade da guitarra elétrica decretou édito imperial conforme o qual as causas dos caminhoneiros são “as nossas”. De quem mesmo, cara-pálida? O decreto real merece um reparo que deve ser estendido aos noticiários nos meios de comunicação. A obstrução de pontos nas estradas de todo o País tem sido chamada de “greve”, definida no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa como “cessação voluntária e coletiva do trabalho, decidida por assalariados para obtenção de benefícios materiais e/ou sociais, direitos trabalhistas, etc., ou ainda para se garantirem as conquistas adquiridas que, porventura, estejam ameaçadas de supressão”. Nos pontos de obstrução nas estradas (quebra da liberdade de ir e vir), reúnem-se, segundo os próprios participantes dos bloqueios, motoristas autônomos. Ou seja, que não trabalham para ninguém e, portanto, não fazem greves. A duração do movimento e sua pauta de reivindicações autorizam quem acredita que eles contem com apoio e infraestrutura de transportadoras de cargas. Se for verdade, já é o caso de apontar a segunda ilegalidade, ou seja, o locaute, aportuguesamento da expressão inglesa lock out, paralisação de patrões, proibida por lei.

O desgoverno federal tornou-se o principal responsável pelo caos gerado pelo desabastecimento de derivados de petróleo, que paralisou fábricas, aeroportos e transportes que não consomem diesel e centrais e mercados de frutas, verduras, carnes e hortaliças, por se ter mostrado incapaz de entender e reprimir à altura o terceiro crime cometido pelos soit-disants manifestantes: a chantagem. Na prática, uma espécie de sequestro em que os produtores, comerciantes e consumidores de outros derivados de petróleo e alimentos, incluindo o sr. Braga, somos vítimas, e não beneficiários eventuais das exigências de suas pautas.

Estes são os caminhoneiros autônomos, as transportadoras, as grandes empresas proprietárias de frotas que consomem preferencialmente diesel, cujo preço passou a ser subsidiado com a subtração de 46 centavos por litro. Os sacrifícios a que Temer se referiu em sua fala do trono no domingo serão não do governo, como disse, mas do contribuinte, que arcará com o pagamento do resgate no valor de R$ 13,5 bilhões, divididos em prestações nos sete meses que ainda restam ao desgoverno Temer.

A benemerência do constitucionalista de Tietê com o chapéu dos outros brasileiros, entre os quais 24 milhões de desempregados e desiludidos, atenderá às transportadoras, como ele fez questão de acentuar, retirando-as das listas das empresas que não terão desoneradas suas folhas de pagamento. Criará uma figura estranha à pretensa ideologia liberal da atual gestão, qual seja, a reserva de mercado dos fretes da Companhia de Abastecimento (Conab). E revolucionará a relação entre capital e trabalho com o estabelecimento de um tabelamento mínimo do frete, uma jabuticaba inacreditável em que o doutor Michel superará seus dois mestres nesse gênero de malabarismos: o colega José Sarney e a ex-titular do cargo Dilma Vana Rousseff, ambos já batidos pelo discípulo no quesito impopularidade extrema.

Em favor de RC, o Único, pode-se dizer que suas vantagens pecuniárias, com o aumento da circulação da canção O Caminhoneiro, não podem ser comparadas nem com esses benefícios citados nem com os outros, de natureza política. O ex-presidente Lula, que está preso em Curitiba e consegue fazer-se ouvir do lado de fora da cadeia sempre que é visitado por algum companheiro, criticou a maneira como o desgoverno Temer tem conduzido a “greve” dos caminhoneiros contra o aumento no preço dos combustíveis e que paralisou o país ao longo da semana. Segundo o líder da oposição na Câmara, José Guimarães (PT-CE), Lula lhe disse: “A que ponto chegamos, o preço da gasolina, uma greve deste porte, cadê o governo, o governo não faz nada?”. Não é mesmo emocionante?

De Lula, contudo, não se podia esperar nada diferente. O mesmo não se pode dizer de Eunício Oliveira, presidente do Senado e correligionário do presidente, que se manifestou contra a política de preços da Petrobrás, à qual atribuiu a crise. Também pudera: o cidadão é candidato à reeleição e seu MDB é um dos 24 partidos que, sob a liderança do presidenciável Ciro Gomes, do PDT, quer reeleger o governador petista do Ceará.

O oportunismo populista deve ser considerado estranho na voz de Roberto. O mesmo se pode dizer do vice-presidente do Senado, Cássio Cunha Lima, que rasgou os discursos liberais de seu partido, o PSDB, ao pedir a cabeça de Pedro Parente pelo crime de estar trabalhando corretamente para evitar a falência da Petrobrás, empreendida pela dupla Lula-Dilma. Ou da governadora do Paraná, Cida Borghetti, mulher do ex-ministro da Saúde de Temer, Ricardo Barros, ao declarar que no seu Estado não permitirá que tropas desmanchem os piquetes dos recalcitrantes praticantes dos crimes continuados de obstrução à mobilidade, garantida pela Constituição, locaute, sequestro e chantagem.

(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.

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