Quando o futuro ministro da Justiça inviabilizar o governo, os aduladores de Bolsonaro perceberão o erro

(*) Ucho Haddad

“Que tempos são estes, em que temos de defender o óbvio?” – Bertolt Brecht

Sem que soubesse, o Criador fez do Brasil a maior usina de especialistas sobre a face da Terra – lembrando que somos 208 milhões de brasileiros. De futebol a política, de combate à corrupção a bolsa de colostomia, o cidadão verde-louro sabe de tudo e tem uma enxurrada de respostas prontas na ponta da língua. E que ninguém ouse contestá-lo, caso o poço de conhecimento for eleitor do imaculado Jair Bolsonaro, o James Bond de Pindorama.

A intolerância que toma conta do País e a cegueira política que domina a sociedade são tamanhas, que qualquer crítica a Bolsonaro tem resposta rápida, rasteira e covarde, sempre acompanhada de ofensas e palavrões. Quem rebate, o faz sem pensar, sem ao menos colocar a massa cinzenta para circular rapidamente pela seara da obviedade.

Lamentavelmente, o brasileiro, preguiçoso que é em termos políticos, continua acreditando ser possível mudar o País à base do tacape, atropelando a lei e atentando contra a Constituição. Quando isso acontece, a democracia corre perigo, sem que a maioria se preocupe com o aviltamento do Estado de Direito.

Diante do anúncio de que o juiz Sérgio Moro aceitou o convite do presidente eleito para comandar o Ministério da Justiça a partir de 1º de janeiro, não hesitei em afirmar que foi um erro enorme do responsável pelas ações penais resultantes da Operação Lava-Jato. E venho fazendo isso há dias. Por razões óbvias, a claque bolsonarista insurgiu exaltada, com o discurso tosco e agressivo de sempre, mas sem refletir de maneira ampla por alguns instantes.

Há quem diga que estou a torcer contra, mas somente quem desconhece o meu trabalho como jornalista pode fazer uma afirmação esdrúxula como essa. Movidos pela ousadia, os bolsopatas chegam a sugerir que devo parar de escrever nas minhas redes sociais, como se não tivesse direito a externar o pensamento, mesmo que absurdo fosse. E já ficou comprovado que não é.

Nos longos anos em que critiquei os governos do PT, ouvi dos petistas a mesma cantilena, a de que estava a apostar no “quanto pior, melhor”, quando na verdade creio com convicção que “quanto melhor, melhor”. Porém, querer o melhor não significa abster-se de críticas, pelo contrário. Quando o objetivo é buscar o melhor – talvez a excelência – é preciso ser crítico, pois do contrário tornamo-nos conformistas. Disse o saudoso Darcy Ribeiro: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”.

É mais do que compreensível a indignação dos brasileiros diante do estrago promovido pelos petistas, mas a reversão do caos não acontecerá à sombra do “bate e arrebenta”. É preciso planejamento, tempo, paciência e perseverança para levar a mudança adiante. Nada do que é pretendido acontecerá da noite para o dia, muito menos ao arrepio da lei, sob pena de qualquer medida ser contestada judicialmente.

Ao se deixar levar pela vaidade e aceitar o convite para comandar a pasta da Justiça, Sérgio Moro compromete os ganhos produzidos pela Operação Lava-Jato no combate à corrupção, ao mesmo tempo em que abre caminho para que corruptos, aqui e acolá, empunhem a bandeira da perseguição política. De quebra, deixará em saia justa colegas de magistratura que estão a julgar processos do Petrolão.

Além disso, Moro, com sua afoita decisão, poderá prejudicar o andamento de processos, que serão bombardeados com arguições de suspeição e de nulidade, previstas em lei. Isso significa que os prazos prescricionais também poderão ser eventual e consequentemente afetados. Será que o estrago justifica a decisão embalada pela vaidade? Na minha opinião, não justifica.

A Lava-Jato passará às mãos de um magistrado certamente com igual competência, mas o Direito Romano contempla um tema controverso, a hermenêutica, que vem provocando polêmicas no escopo de decisões judiciais que têm contrariado as expectativas de uma sociedade que busca justiçamento, não justiça. Nesse cenário é preciso considerar que o próximo juiz da Lava-Jato, ainda não definido, pode ter uma visão distinta dos crimes cometidos pelos réus, portanto, não surpreenderá se suas sentenças divergirem das de Sérgio Moro. O que não significa que um esteja certo, o outro, errado.

Retomo a questão do “torcer contra”… Ao contrário do que pensam meus contumazes críticos, todos aduladores do eleito, minha discordância em relação a Jair Bolsonaro não remete à torcida contra o País e ao próximo governo. Contudo, não posso mandar às favas minha experiência como jornalista político – lá se vão 36 anos – nem atropelar a reconhecida lógica das minhas análises políticas, as quais exigem visão do futuro.

No momento em que Sérgio Moro justifica o fato de ter aceito o convite do presidente eleito com o argumento de que como ministro da Justiça criará uma intensa agenda de combate à corrupção, quem conhece minimamente sobre política – deixando de lado os “achismos” – sabe que esse é o endereço do mais novo ponto de fragilidade do próximo governo. O Ministério Público e a Justiça têm cumprido muito bem o papel que lhes cabem. Explico a seguir.

Ninguém deve imaginar que Jair Bolsonaro é a versão contemporânea e tropical de Messias, mesmo carregando esse nome, nem que, a exemplo do que ele próprio disse em culto religioso, que Deus capacita os escolhidos, pois quando o assunto é político o melhor é não misturar Deus e o demônio. Se por um lado seus eleitores foram às urnas impulsionados por um discurso de mudança com a moldura do ódio, por outro a mudança não se deu na sua inteireza. Aliás, é preciso esperar mais alguns meses para saber se a tal mudança, cobrada pela sociedade, ocorreu na prática ou tropeçou na teoria.

Moro chegará ao Palácio da Justiça com pompa e circunstância e na condição de político que acredita ser, com a obrigação de cumprir o que está a prometer. Caçar corruptos a mais não poder. O quase ministro é um profundo conhecedor da lei, não se pode negar, apesar dos tropeços cometidos no âmbito da Lava-Jato, mas em termos políticos é um neófito.

No caso de sair caçando corruptos Brasil afora, como exigem aqueles que ora se manifestam nas redes sociais, a Moro desejando boa sorte e outras vibrações positivas, há uma grande possibilidade de o governo Bolsonaro tornar-se inviável a reboque da atuação do ministro da Justiça, que recebeu carta branca do presidente eleito. Alguém há de perguntar como essa inviabilidade surgiria, mas a resposta está em plano que exige bom senso e pensamento lógico em termos políticos, que apenas os que conhecem os meandros do poder conseguem alcançar.

Por mais que o discurso supostamente moralizador de Bolsonaro tenha funcionado nas urnas, no Congresso ainda existem corruptos ou partidos que abrigam esse tipo de transgressor da lei. E qualquer investida do governo contra esses remanescentes saltimbancos com mandato – e não são poucos – pode provocar uma intifada. Resta saber se Jair Bolsonaro saberá lidar com uma situação como essa – que não é impossível – ou colocará tudo a perder.

Para um governo oficioso que ainda está na fase de transição, tem um punhado de desafios pela frente e depende do apoio de um Congresso fragmentado para aprovar matérias do seu interesse, o melhor no momento é pensar muito, antes de decidir de forma açodada apenas para agradar a massa ignara.

Em relação a Sérgio Moro, aguardar uma vaga no Supremo Tribunal Federal sentado na cadeira de ministro da Justiça durante dois anos é prova de desconhecimento político. Em um governo controverso como promete ser o de Jair Bolsonaro, um despreparado confesso, dois anos representam uma eternidade, período em que podem ocorrer fatos dos mais absurdos, entre os quais exoneração e pedido de demissão. Acontecendo uma coisa ou outra, o que não é difícil, Moro ficaria desempregado e sem a garantia de ser indicado ao STF. Em outras palavras, a advocacia o receberia de braços abertos. Como sou precavido, até porque o argentar dos cabelos recomendam cautela, prefiro tê-lo como juiz da Lava-Jato.

Por outro lado, se Bolsonaro não amainar o discurso e continuar atentando contra a Carta Magna e desafiando os outros Poderes constituídos, o governo que ainda não estreou pode sequer chegar ao fim. Mesmo assim, há aqueles que continuam acreditando que torço contra, quando na realidade a torcida contrária parte dos que se recusam a enxergar o óbvio.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.