Em nova “missa encomendada” midiática, Bolsonaro diz que Fabrício jamais foi seu “laranja”

Governos populistas, de esquerda e de direita, seguem a mesma cartilha: enganam a opinião pública de acordo com a necessidade do momento, sempre culpando a imprensa pelo calvário que enfrentam. Receita conhecida, cujo prazo de validade se perdeu ao longo da história.

No caso de Jair Bolsonaro, que toma posse nesta terça-feira (1) como 38º presidente da República, o enredo não será diferente em sua essência, mas terá alguns adereços já apresentados durante a campanha. Especialista em demonizar a imprensa, que sempre aponta suas incoerências, Bolsonaro escolhe os veículos de comunicação a quem concede entrevista, o que mostra seu viés antidemocrático.

Essa seletividade em relação à imprensa se explica não apenas por sua posição política atrasada e canhestra, mas por sua conhecida dificuldade com as palavras, o que o obrigou a fugir dos debates eleitorais. Ou seja, Bolsonaro concederá entrevista aos veículos de comunicação dados à sabujice, que aceitarão a famosa “missa encomendada”.

No apagar das luzes de 2018, Jair Bolsonaro concedeu entrevista à TV Record e afirmou que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, “nunca foi” seu laranja. E ninguém esperava que dissesse o contrário, pois seria suicídio político antes da hora.

Queiroz, um “globetrotter” das finanças, foi citado em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) por ter movimentado R$ 1,2 milhão durante um ano, incluindo pagamentos de R$ 24 mil a Michelle Bolsonaro, futura primeira-dama do País.

“Conheço o Queiroz desde 1984, foi recruta meu. Fomos nos reencontrar depois, eu deputado, e ele policial militar. Sempre gozou de toda liberdade e confiança nossa, já foi pescar comigo, passou férias. Apareceu no Coaf, com o nome de pessoas que transferiram para a conta dele. Três (são) familiares. São pessoas que depositaram de R$ 300 a R$ 8 mil, durante um ano, não foi todo mês. Ele já falou claramente sobre aquela desconfiança, “ah, é caixa 2, é laranja”… De mim nunca foi”, defendeu-se Bolsonaro.

O eleito afirmou que no caso de surgirem novos fatos, as explicações cabem a Fabrício Queiroz. Bolsonaro insistiu que o depósito no valor de R$ 24 mil n conta de Michelle refere-se ao pagamento de uma dívida.

“A questão da minha esposa. Foi uma dívida que foi se acumulando, eu cobrei dele. Foi um dinheiro que foi acumulando. Há 6, 7 anos atrás, tinha outra dívida, de R$ 20 mil reais. Quem nunca fez um negócio com um amigo? Não cobrei juros, não cobrei nada. Se tiver algo mais, que eu desconheça, cabe a explicação a seu Fabrício Queiroz, não cabe a mim”, disse Jair Bolsonaro.

Como todo escândalo que ainda engatinha nos capítulos iniciais, os envolvidos padecem por não combinar os discursos. É o caso do imbróglio que já é chamado de “Bolsogate”. Bolsonaro não convence com esse discurso do empréstimo e precisa provar o que diz. Não é crime emprestar dinheiro a um amigo, mas deveria ter informado à Receita Federal. Um deputado federal deveria saber disso.


O presidente eleito disse que o depósito foi feito na conta de Michelle porque ele não tem tempo para ir ao banco, mas reportagens mostram que Bolsonaro vai ao caixa eletrônico dia sim, dia não. Ou seja, alguém está a faltar com a verdade.

Fabrício Queiroz, por sua vez, disse que deu a Bolsonaro dez cheques no valor de R$ 4 mil. Ora, se a dívida é de “6, 7 anos atrás”, os referidos cheques prescreveram. E mais, se a dívida inicial era de R$ 20 mil, não havia razão para Fabrício entregar cheques no valor total de R$ 40 mil.

Causa espécie o fato de Fabrício ter pedido dinheiro emprestado a Bolsonaro, pois em recente entrevista ao SBT disse, ao tentar explicar sua movimentação bancária, ser um “fazedor de negócios”. E quem faz negócios com tanta facilidade e ganha dinheiro aos bolhões não precisa recorrer aos amigos.

Que há em marcha um enredo para sufocar o escândalo todos sabem, mas é preciso que a imprensa “não vendida” insista no assunto, pois é inaceitável que um caso grave como esse seja varrido para debaixo do tapete. Para quem prometeu, durante a campanha, acabar com a corrupção, Jair Bolsonaro é o que se pode chamar de “espanto”.

Fabrício Queiroz pode declarar o que quiser, inclusive alegar que tinha como atividade paralela (talvez fosse a principal) a venda de carros usados, mas o ex-assessor precisa explicar o que levou servidores do gabinete de Flávio Bolsonaro a depositarem dinheiro em sua conta. Coincidentemente, os depósitos ocorriam em datas próximas ao pagamento dos salários pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj)

Milagre da multiplicação

Nessa epopeia “bolsonarista” há muitos especialistas no chamado milagre da multiplicação. O primeiro deles com certeza é Jair Bolsonaro, que em processo de separação foi acusado pela ex-mulher, Ana Cristina Siqueira Valle, de ter renda superior aos vencimentos e ocultar patrimônio.

De acordo com reportagem da revista Veja, publicada em 28 de setembro de 2018, Ana Cristina afirma no processo que Bolsonaro tinha próspera condição financeira, com renda mensal de R$ 100 mil reais (R$ 183 mil em valores atualizados).

À época, Bolsonaro recebia R$ 26,7 mil como deputado e R$ 8,6 mil como militar da reserva. No processo, mais especificamente no trecho em que apresenta pedido de pensão, Ana Cristina alega que, para totalizar os R$ 100 mil reais, Bolsonaro recebia outros proventos, mas não identifica a origem desses recursos.

A revista reproduziu também boletim de ocorrência policial, de 26 de outubro de 2007, em que Ana Cristina denuncia o furto de R$ 600 mil em joias, US$ 30 mil e R$ 200 mil em dinheiro vivo que estavam guardados em um cofre alugado por ela em agência do Banco do Brasil, no Centro do Rio. Os valores eram incompatíveis com os rendimentos do casal.