Raposa no galinheiro: Bolsonaro transfere demarcação de terras indígenas para a pasta da Agricultura

Uma das primeiras medidas adotadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, logo após tomar posse em Brasília, na terça-feira (1°), foi a edição de uma medida provisória estabelecendo a nova estrutura do governo federal, incluindo a transferência da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura.

Com o início do novo governo, a pasta da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) passou a ser chefiada pela ex-deputada federal Teresa Cristina, que pertencia à bancada ruralista da Câmara dos Deputados. Durante a transição, a nova equipe do Ministério havia afirmado que as atribuições referentes às demarcações não ficariam a cargo da instituição, mas sim de um conselho interministerial.

O texto da medida provisória, porém, estabelece que “a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas” ficam a cargo do Ministério. Na prática, a medida retira a competência da Fundação Nacional do Índio (Funai) para lidar com as demarcações das terras indígenas.

A publicação também transfere do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a pasta da Agricultura a responsabilidade pela regularização de terras quilombolas. A medida provisória se restringe a indicar qual órgão ficará encarregado da tarefa, sem informar como funcionará o processo de demarcação.

O órgão também controlará o Serviço Florestal Brasileiro e atuará em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente na administração das florestas públicas. A nova medida provisória foi publicada na edição desta quarta-feira (2) do Diário Oficial da União, com a assinatura do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

Durante a campanha, Bolsonaro havia dito que os povos indígenas não terão novas terras demarcadas e chegou a cogitar a revisão da demarcação de algumas reservas, como a Raposa Serra do Sol.


Mero devaneio

Bolsonaro pode falar o que quiser, mas terá de cumprir o que determina a Constituição e respeitar as decisões da Justiça, goste ou não. E no tocante à reserva indígena Raposa Serra do Sol, o presidente da República terá de guardar a fanfarronice na gaveta, porque o Supremo Tribunal Federal STF) há muito decidiu sobre o tema.

Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-ministro Carlos Ayres Britto afirma que a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol não pode ser revista pelo próximo governo. Ayres Britto foi relator da ação julgada pelo STF em 2009. “A decisão transitou em julgado. Foi uma decisão histórica. Para os índios, é direito adquirido”, afirma.

“Tivemos o cuidado de conciliar os interesses dos índios com os interesses nacionais. Não há motivo para rever nada, nada, nada”, afirma o ex-ministro. “As terras indígenas pertencem à União. Qual é o perigo para a soberania nacional? Nenhum”, completa.

As salvaguardas do Supremo não deixam dúvidas que “o usufruto dos índios não alcança a pesquisa e a lavra das riquezas minerais” e que as Forças Armadas não precisam consultar os índios ou a Funai para atuar na região.

“Ficam dizendo coisas imprecisas, e até equivocadas, para projetar antipatia contra os índios”, diz Ayres Britto. “Depois que o Estado paga uma dívida histórica, civilizatória, ele não pode mais estornar o pagamento e voltar a ser devedor”, acrescenta.

É preocupante, diz o ex-ministro, que “muita gente ainda fale em aculturar os índios”. “O índio não deixa de ser índio porque usa uma calça jeans. A lógica da Constituição não foi substituir a cultura dos índios pela dos brancos. Foi somá-las. Quando a pessoa não entende a lógica da Constituição, fica difícil”, critica.

Bolsonaro é, além de despreparado, muito mal assessorado. O que o obriga a passar por vexames e constrangimentos desnecessários, como o que envolve a declaração sobre a reserva indígena localizada no nordeste do estado de Roraima. Como bem lembrou o ex-ministro Ayres Britto, a decisão do STF sobre a Raposa Serra do Sol transitou em julgado e o governo não poderá alterar a demarcação da reserva.