A distinção entre vício e defeito no Código de Defesa do Consumidor

(*) Rizzatto Nunes

O Código de Defesa do Consumidor (CDC-Lei n. 8.078/90), em termos conceituais, estabeleceu uma confusão ao pretender, como fez, utilizar dois termos distintos: “defeito” e “vício”. Os defeitos são tratados nos arts. 12 a 14 e os vícios nos arts. 18 a 20. Para entender “defeito” no CDC é necessário antes conhecer o sentido de “vício”.

Vício

O termo “vício” lembra vício redibitório, instituto do direito civil que tem com ele alguma semelhança na condição de vício oculto, mas com ele não se confunde. Até porque é regra própria do sistema do CDC.

São considerados vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os produtos ou serviços impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e também que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária.

Os vícios, portanto, são os problemas que, por exemplo:

a) fazem com que o produto não funcione adequadamente, como um liquidificador que não gira;

b) fazem com que o produto funcione mal, como a televisão sem som, o automóvel que “morre” toda hora etc.;

c) diminuam o valor do produto, como riscos na lataria do automóvel, mancha num vestido ou num terno etc.;

d) não estejam de acordo com informações, como o vidro de mel de 500 ml que só tem 400 ml; o saco de 5 kg de açúcar que só tem 4,8 kg; o caderno de 200 páginas que só tem 180 etc.;

e) façam os serviços apresentarem características com funcionamento insuficiente ou inadequado, como o serviço de desentupimento que no dia seguinte faz com que o banheiro alague; o carpete que descola rapidamente; a parede mal pintada; o extravio de bagagem no transporte aéreo etc.

Os vícios podem ser aparentes ou ocultos.

Os aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são aqueles que aparecem no singelo uso e consumo do produto (ou serviço).

Ocultos são aqueles que só aparecem algum ou muito tempo após o uso e/ou que, por estarem inacessíveis ao consumidor, não podem ser detectados na utilização ordinária.

Defeito

O defeito, por sua vez, pressupõe o vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do produto ou serviço em si.

O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao produto ou serviço, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago — já que o produto ou serviço não cumpriram o fim ao qual se destinavam. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral e/ou estético e/ou à imagem do consumidor.

Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador.

Temos, então, que o vício pertence ao próprio produto ou serviço, jamais atingindo a pessoa do consumidor ou outros bens seus. O defeito vai além do produto ou do serviço para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico mais amplo (seja moral, material, estético ou da imagem). Por isso, somente se fala propriamente em acidente, e, no caso, acidente de consumo, na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido (i).

Vejamos agora dois exemplos que elucidam a diferença entre vício e defeito.

Exemplo nº 1

Dois consumidores vão à concessionária receber seu automóvel zero quilômetro. Ambos saem dirigindo seu veículo alegremente. Os consumidores não sabem, mas o sistema de freios veio com problema de fábrica.

Aquele que sai na frente passa a primeira esquina e segue viagem. No meio do quarteirão seguinte, pisa no breque e este não funciona. Vai, então, reduzindo as marchas e com sorte consegue parar o carro encostando-o numa guia.

O segundo, com menos sorte, ao atingir a primeira esquina, depara com o semáforo no vermelho. Pisa no breque, mas este não funciona. O carro passa e se choca com outro veículo, causando danos em ambos os carros.

O primeiro caso, como o problema está só no freio do veículo, é de vício. No segundo, como foi além do freio do veículo, causando danos não só em outras áreas do próprio automóvel como no veículo de terceiros, trata-se de defeito.

Exemplo nº 2

Um consumidor compra uma caixinha longa-vida de creme de leite. Ao chegar em casa, abre-a e vê que o produto está embolorado. É vício, pura e simplesmente.

Outro compra o mesmo creme de leite. Abre a caixa em casa, mas o faz com um corte lateral. Prepara um delicioso strogonoff e serve para a família. Todos têm de ser hospitalizados, com infecção estomacal. É caso de defeito.

É, portanto, pelo efeito e pelo resultado extrínseco causado pelo problema que se poderá detectar o defeito.

Conclusão

Por fim, lembro que o CDC trata vício de maneira muito diferente de defeito, inclusive no que respeita ao agente que pode ser responsabilizado, aos prazos etc.

E o chamado acidente de consumo, naturalmente, está relacionado com o defeito, sendo mais devastador e podendo atingir terceiros que não participavam da relação de consumo como no caso relatado no exemplo nº 1 acima ou, num outro exemplo, como ocorre numa queda de um avião sobre casas ao redor do aeroporto etc.

(i) Seria mais adequado dizer “mais atingido”, porque, quando há vício, o consumidor já é afetado de alguma maneira, ainda que apenas no aspecto patrimonial do preço pago pelo produto ou serviço viciado.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.