A tragédia da Chapecoense e o “achismo” criminoso dos comunicólogos de plantão

(*) Ucho Haddad

ucho_24O Brasil é um país de especialistas. São 200 milhões de técnicos de futebol, 200 milhões de analistas políticos, 200 milhões de economistas, 200 milhões de jornalistas, 200 milhões de especialistas em aviação. Esse bando de gênios de ocasião crê dominar todos os assuntos, quando na verdade sabe de nada. Aliás, esses 200 milhões de “saberetas” não sabem sequer respeitar o ser humano e sua dor.

As primeiras notícias sobre o acidente ocorrido com a aeronave que transportava a equipe da Chapecoense ainda aterrissavam no Brasil, quando os tais especialistas começaram a aspergir besteiras para todos os lados. A obsessão por uma informação exclusiva, nem sempre certeira, suplanta a dor dos familiares das vítimas. É importante destacar que entre esses especialistas há gente experimentada e com diplomas vários, assim como francos atiradores.

Com experiência pessoal e profissional em acidentes aéreos, afirmo, sem medo da polêmica que há de surgir na contramão, que em tragédias inexistem informações exclusivas. É preciso respeitar o momento vivido pelas famílias, lembrando que qualquer informação desencontrada não apenas aumenta a dor, mas gera esperança indevida ou desolação equivocada.

Não podemos esquecer a bizarra matéria veiculada pela Rede Globo sobre o acidente com o avião que transportava o então candidato presidencial Eduardo Campos, em 2014, que despencou sobre a cidade de Santos, no litoral paulista. Um repórter da Vênus Platinada conseguiu a proeza de acreditar no depoimento de uma suposta testemunha, que afirmou ter identificado o corpo de Campos ao ver a coloração azul dos olhos do então candidato do PSB. Jamais uma mentira monumental foi tratada como verdade suprema.

A primeira besteira na esfera do acidente com o avião da Chapecoense ficou por conta do fato de a companhia aérea ser boliviana. É importante ressaltar que o modelo da aeronave acidentada é considerado seguro e seu fabricante, a British Aerospace, é tido como absolutamente confiável. O modelo Avro RJ 85 (BAe 146) é um dos jatos comerciais britânicos mais bem sucedidos, sendo utilizado inclusive para transporte de militares. Em suma, ocorreu uma tragédia na Colômbia.

A segunda sandice surgiu na esteira das causas do acidente, as quais serão conhecidas apenas no vácuo de muitas análises periciais, o que demandará tempo e paciência. Mesmo assim, dúvidas restarão para sempre. Informou-se que o avião caiu por causa de pane seca. Essa conclusão é fruto de uma interpretação simplista e precipitada: não houve explosão no momento em que a aeronave tocou o solo. Ora, se a aeronave enfrentou uma pane elétrica, o procedimento padrão é esvaziar os tanques para evitar explosão. Na pior das hipóteses os pilotos erraram no cálculo do tempo entre o ponto em que a aeronave desapareceu do radar e a pista do aeroporto de Medelín, na Colômbia. Possivelmente, após o esvaziamento dos tanques, não sobrou combustível para percorrer a distância aproximada de 30 quilômetros até o aeroporto.

A irresponsabilidade informativa continuou despejando besteiras sobre a opinião pública, que por sua vez fermentou informações distorcidas e sensacionalistas. Não demorou muito para a culpa recair sobre a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que proibiu o voo fretado de Guarulhos a Medelín. De acordo com regras internacionais de aviação, um voo fretado só pode percorrer o trecho entre o país do contratante e o da empresa prestadora do serviço, no caso a companhia aérea. Como a empresa LaMia (Línea Aérea Mérida Internacional de Aviación) é boliviana, a Chapecoense viajou até a Bolívia (Santa Cruz de La Sierra) em avião de carreira e de lá embarcou no voo fretado rumo a Medelín. Ou seja, a Anac não tem qualquer responsabilidade na tragédia, pois cumpriu o que determina a legislação internacional de aviação civil.

Falou-se muito sobre a possibilidade de a aeronave não ter decolado de Santa Cruz de La Sierra com os tanques cheios pela necessidade de alcançar altitude para superar as cordilheiras existentes na região. Especulação barata de quem nada entende de aviação e quer liderar o ranking das bizarrices informativas. Uma aeronave gasta menos combustível quanto maior for a altitude do voo. E o motivo é meramente científico: como nas alturas o ar é rarefeito, a combustão é consequente menor.

Não obstante, alguém sugeriu nas redes sociais que quando o Brasil é palco de uma grande decisão – no caso a votação das medidas anticorrupção – uma tragédia sempre acontece. Como se o script da vida – e da política também – pudesse ser mudado com a mesma facilidade com que se acende a luz da sala. Como se os jogadores da brava Chapecoense precisassem morrer para eventualmente adiar a votação no Congresso Nacional. A imaginação desses pensadores (sic) é tamanha, que até sinto o olor dos neurônios em decomposição.

Por questões óbvias, afinal o Brasil é o país da piada pronta, alguns “engraçadinhos” postaram nas redes sociais que “time grande não cai”. Humor negro de quem não tem competência sequer para existir. Apenas para lembrar, algumas grandes equipes desportivas internacionais foram vítimas de acidentes aéreos: Manchester United, Torino, River Plate e Alianza de Lima.

O acidente com o avião da Chapecoense foi um erro crasso de logística. Por sensatez o ideal seria viajar em voo comercial até Bogotá e de lá seguir para Medelín. Como em tempos de crise a questão financeira fala mais alto, a equipe e os organizadores da Copa Sul-Americana buscaram solução menos custosa, o que não significa insegurança. Mesmo assim, não se pode vilipendiar a dignidade de cada familiar das vítimas, as quais devem ter ao menos a memória respeitada.

Confesso que há muito bateu um cansaço inesperado. Estou cansado de escrever para quem é ignaro incorrigível, para quem acredita que um celular e um perfil na rede social são suficientes para o exercício do jornalismo, para quem é dono da opinião maior e derradeira, para quem cultua a teoria da conspiração. Não se trata de rejeitar o contraditório, pelo contrário, mas é preciso que esse [contraditório] seja pelo menos baseado na coerência e na boa informação.

Contudo, nessa barafunda chamada Brasil impera o “vale tudo”. Por aqui, a confusão perene que alguns ousam chamar de país, há paradigmas intransponíveis: Barack Obama é comunista; Lulinha é dono da Friboi; Michel Temer é a solução definitiva para os problemas nacionais; a força-tarefa da Operação Lava-Jato é o panteão dos corajosos; o avião que levava Eduardo Campos foi atingido por um drone comunista; Marcelo Calero foi cooptado pela esquerda tupiniquim; Angela Merkel é uma desqualificada; todo muçulmano é terrorista; Donald Trump é o meu pastor, nada me faltará; a Anac é culpada pela tragédia com o avião da Chapecoense. E alguém ainda há de afirmar que a aeronave só despencou na Colômbia porque algum corrupto do Petrolão agiu nos bastidores. E assim vai!

Depois de quatro décadas ininterruptas dedicadas ao jornalismo, a sensação é de que chegou a hora de aposentar a pena. Não dá mais para escrever para quem não entende os fatos e rechaça qualquer possibilidade de aprendizado. Não que seja um professor – fui em priscas eras –, mas porque dedico dois terços do dia à notícia, sempre em busca da melhor informação, da análise mais balizada, do bom jornalismo.

Não sou especialista em aviação, mas vivi de forma extremamente próxima duas tragédias aéreas – uma como filho e outra como profissional de comunicação. Aos familiares dos passageiros que estavam no avião acidentado, minhas sinceras condolências. Às vítimas, minhas orações contínuas. Porque creio em Deus, que deu-me talento suficiente para escrever de maneira responsável, comprometida, ética e séria.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

apoio_04