Transcatarse e a boca no mundo

(*) Marli Gonçalves

Abrem-se os armários, escancaram-se as gavetas, somem as maçanetas, os cadeados se rompem. Bem loucos esses nossos tempos. Bolhas estouram, criam sensações coletivas, e de repente um assunto toma uma dimensão gigantesca, ultrapassa muros, pruridos, irrompe nas salas de estar e jantar, traz convidados de todos os lados para se expor também. Nos consultórios de análise deve se tornar a ordem do dia. Essa semana foi o tema assédio sexual. Daqui a pouco some. Tudo é catarse. Tudo é trans. Proponho a Trans-idade

Uns estão até atropelando os outros, ou melhor, umas estão se amontando na ânsia de gritar mais alto “eu também passei por isso”. A pergunta já circula: virou moda denunciar assédio sexual? Não sei se é ou virou moda, garanto só que era mais do que necessário falar sobre isso e afirmo que todas as mulheres já passaram ou passarão por esse problema. Alguém perguntou agora, elas estão respondendo. Voz de mulher tem bom alcance. Se fosse feito esse registro, se todas resolvessem processar os assediadores, não haveria mais espaço para uma mosca nos salões judiciais. Todas as mulheres passaram ou passarão. Não é de hoje. Chato é que não – também – será de hoje para amanhã sua solução.

Alguém se expõe ou é exposto. Voltando à geral, É muito interessante observar o estopim dos temas. Nesse caso foi o envolvimento de um galã o que tacou fogo na palha seca. No caso da violência contra a mulher o tema ficou no ar uma temporada quando Luiza Brunet mostrou seu olho roxo, as costelas quebradas.

Infelizmente a violência contra a mulher ainda tem atingido recordes em número e crueldade e o assédio sexual continuará violentando diariamente a moral. Até que venha nova onda e, de novo, esse ciclo antropofágico, com suas melhorias de passinhos de tartaruga.

Andei pensando no Trans, o prefixo mais falado dos últimos tempos, que exprime o significado de além de, para além de, em troca de, através, para trás e também pode ser travessia, deslocamento ou mudança de uma condição para outra.

Reparou que ultimamente temos ouvido constantemente falar de alguém que se olhava no espelho e não se reconhecia, ou que olha e não se vê – ou naquele corpo, ou naquele papel, ou naquela roupa, ou na situação? E que, assim, tomou coragem e mudou? Transformou-se. Fantástico. Aliás, o programa com esse nome dedicou uma série ao assunto do ponto de vista sexual, os que não se acomodam com o sexo com o qual foram registrados quando alguém deu a palmadinha e o bebê deu o primeiro berro, de choro. Os transgêneros definitivamente estão sendo vistos e conseguindo ser entendidos. E estão ajudando mais e mais gente a se entender com o tal espelho que não os reflete.

Hoje tem transtudo. O legal é poder usar esse poder mágico da decisão e da troca. Eu era assim, fiquei assim. Ex-gordinhas, hoje fisiculturistas. Ex-BBBs, hoje gente interessante. Esquerda que virou direita, e até direita tentando se acasalar com a esquerda para atazanar a paciência do rei.

Sugiro mais um trans. O trans-idade. As pessoas que não se sentem na idade que têm. Está pegando maravilhosamente. Mulheres, que até outro dia seriam consideradas velhas corocas, resistindo bravamente, provando que idade é tempo sim, mas sua passagem traz sensações diferentes. Não pode trazer limites, regras, proibições que não as da natureza. O contrário também existe: crianças que viram adultas, cantando, cozinhando, surpreendendo até a ciência. Ou pulando e sendo puladas de suas adolescências pela violência da realidade.

(*) Marli Gonçalves, jornalista – Liberdade para as borboletas. Vamos continuar tentando nos transformar no que queremos. No que nos deixará felizes pelo menos mais um pouquinho.

SP, 2017

Tenho um blog, Marli Gonçalves, divertido e informante ao mesmo tempo, no http://marligo.wordpress.com. Estou no Facebook. E no Twitter @Marligo

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