“Acumular dinheiro não é o objetivo do sambista, e nem do samba”
(*) Karina Trevizan – com colaboração do jornalista Gabriel Vituri, da revista “Viração”
Das raízes populares ao universo da classe média, o samba passou por diversas transformações desde o seu surgimento, no início do século XX. Das marchinhas ao samba-rock, da periferia ao centro, este estilo musical pôde, com o passar das décadas, chegar aos ouvidos de um público que, se não fosse pelo surgimento do rádio, nunca saberia de onde veio ou sequer teriam conhecido o tal do samba. Porém, em um aspecto ele não se modificou: manteve estreita relação com o cotidiano e, consequentemente, com o dinheiro (ou a falta dele).
O samba foi criado e desenvolvido por grupos de camadas sociais menos favorecidas, notadamente ligadas ao universo da cultura negra, formada por ex-escravos ou descendentes. No entanto, desde que se nacionalizou nos anos 30 com a chegada do rádio, que ajudou a difundir o ritmo, observa-se que, majoritariamente, o ritmo atingiu classes mais altas e “escapou” de suas origens mais pobres. Em outras palavras, o que nasceu como cultura popular se tornou “elitizado”.
O interessante é que, embora o público tenha crescido e, consequentemente, se diversificado, as temáticas de opressão social, dia a dia da periferia, enfim, do dinheiro em escassez, continuam presentes nas composições. Assim comprovam os bares que tocam samba localizados em bairros nobres e frequentados pelas classes A e B. Entre eles, há os que conservam o samba como uma tradição e outros com freqüentadores que não são apreciadores assíduos do gênero.
O Na Aba, localizado no bairro de Pinheiros, é um exemplo de estabelecimento que preserva a tradição do samba. Não por acaso, a lotação máxima é de apenas 60 pessoas. “Não é uma casa que explodiu, porque o público que vai realmente gosta de curtir o samba e entender a letra. O pessoal vai para ouvir mesmo, poucos pra dançar”, explica Ney Silva, cantor, compositor e dono do Na Aba. “Estou aqui pela sexta ou sétima vez. Escuto samba sempre”, conta o músico Perdro Mccardell, 30 anos, frequentador do local.
A estudante de Direito da PUC-SP Fernanda Diniz, 22 anos, frequenta diversas rodas de samba na cidade de São Paulo. “O público é sempre muito diferente; no Samba da Vela, por exemplo, vi desde famílias humildes que levam as crianças pro samba até grupos de estudantes com carros luxuosos”, conta Fernanda. Já para Irene Guimarães, 24 anos, formada em Geografia na USP, “algumas pessoas pagam uma fortuna para entrar em bares da Vila Madalena e mal sabem o que significa uma letra de samba, o pessoal vem mais pra dizer que gosta do ritmo do que pra apreciar a música e o estilo”.
O processo de expansão do público da classe mais pobre para a mais rica, no entanto, não é um fenômeno tão recente quanto parece. O historiador José Adriano Fenerich, autor da tese “Nem do morro, nem da cidade: As transformações do samba e a indústria cultural – 1920-1945”, explica: “Já nos anos 20 e 30, o samba extrapolou o universo negro, ganhando audiência e sambistas de várias classes sociais. Artistas fundamentais para o gênero como Noel Rosa, Ary Barroso, Carmem Miranda, entre outros, eram da classe trabalhadora e de uma pequena classe média que estava surgindo. Assim, não penso em refinamento atual, e nem posso pensar em moda atual”.
Fenerich comenta, ainda, a questão do samba como a tradução do cotidiano que, por sua vez, tem o dinheiro como elemento fundamental. “O cotidiano é o próprio samba”, concorda o historiador. Quanto à temática econômica, Fenerich esclarece que “a questão não é tanto a falta de dinheiro, mas a idéia de que isso não é a coisa mais importante do mundo. Acumular dinheiro não é o objetivo do sambista, e nem do samba”.
A trajetória do samba, como elemento da cultura popular brasileira, não mostra o gênero como pertencente a uma só classe social, como pontua José Adriano Fenerich. “Por um lado, tal como se constituiu ao longo do século XX, [o samba] é filho da moderna sociedade capitalista, da urbanização desenfreada, da produção industrial da cultura e do mercado de massas. Por outro, se apresenta como uma espécie de depósito das tradições e da memória coletiva”, explica o historiador. Ele também aponta para a preocupação em adaptar o samba às exigências do mercado sem que ele perca suas características. “O samba não deve se restringir ao mero mercado de música, com a padronização feita pela indústria cultural, mas também não deve ser visto como um elemento arcaico. O samba é uma rica tradição de mudanças”.