Ex-ministro do Supremo classifica como “concubinato” a relação intimista entre a imprensa, o Judiciário e as instituições policiais –
(*) Gilmar Corrêa
Aos 71 anos ele se mantém ativo. Largou o Supremo Tribunal Federal em 2006, após dezessete anos como magistrado da mais alta Corte da Justiça brasileira. Mineiro de Sabará, o agora advogado José Paulo Sepúlveda Pertence continua com humor fino e uma ironia bem própria das Gerais: “E há poucos dias um colega daqueles tempos dizia que nós pensávamos que aquilo era briga. Digamos que era uma dança de minueto”. O comentário refere-se ao bate-boca transmitido em tempo real pela televisão e pelo rádio entre os ministros do STF Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes.
Há quatorze anos, três dias antes de assumir a presidência da Suprema Corte, Sepúlveda Pertence concedeu uma entrevista que jogou luz sobre o futuro da Justiça brasileira (clique e confira a entrevista). À época, o então ministro já antecipava a necessidade de controle do Judiciário. Hoje, acomodado em um escritório modesto, onde se destacam a flâmula do seu time do coração, o Clube Atlético Mineiro, um porta-retrato com o ex-presidente sul-africano Nelson Rolihlahla Mandela e um quadro de Vitor Nunes Leal [“Foi uma figura singular no STF e entre o paternal e o fraternal”], o ex-ministro falou novamente sobre temas importantes como o relacionamento entre a imprensa e o Judiciário e a eterna discussão sobre a Justiça estar aparentemente apenas a serviço dos mais ricos.
Há catorze anos, o senhor concedeu uma entrevista, ocasião em que estava com o gabinete lotado de – em cima da mesa e empilhados no chão. Hoje, o senhor retiraria alguma coisa do que disse à época?
Sepúlveda Pertence – Não, substancialmente não. E isso dá até certa satisfação.
O que o senhor suprimiria ou acrescentaria?
Sepúlveda Pertence – Olha, é claro que hoje se vive, após uma mudança no capítulo constitucional do poder Judiciário pela qual eu lutei muito, mas sem resultados imediatos, nos dois anos em que estive na presidência do Supremo e imediatamente após. E no que diz respeito ao Supremo, os dois mecanismos que preguei com maior rigor foram acolhidos. O da Súmula Vinculante e o da chamada repercussão geral, da velha pregação de Vitor Nunes para o critério da relevância para admissão do recurso extraordinário. Eu deixei o Tribunal [STF] quando votada a Emenda Constitucional e a primeira lei que regulamentou a Súmula Vinculante, e o Tribunal ainda se preparava para as novas práticas que agora se iniciam. Sirvo para dizer de resultado definitivo, mas não tenho dúvida de que ele, no âmbito do tribunal, vai trazer um equipamento institucional muito útil para o ganho de drama dos números assustadores do supremo tribunal, que é dos processos ociosos.
O senhor entende que atualmente a Justiça – ou a Suprema Corte – está entrando em uma nova fase?
Sepúlveda Pertence – O Supremo Tribunal não há dúvida. Exatamente com a prática destes dois instrumentos: da súmula vinculante e da repercussão geral.
Eu não poderia deixar de fazer esta pergunta, mas esse bate-boca entre ministros pode ser algo que denigre a imagem do Judiciário, como muitos dizem?
Sepúlveda Pertence – Olha, não. Foi um momento de exaltação de dois temperamentos. Isso existe em todo colegiado. O que está muito em discussão a propósito desse episódio, que é lamentável, mas é humano, é este passo audacioso que o supremo tomou de transmitir diretamente, sem nenhuma edição, as suas sessões plenárias. E o tribunal já era uma das poucas cortes supremas do mundo que decidia em público.
A tendência agora é deixar de se transmitir ao vivo as sessões do plenário?
Sepúlveda Pertence – De modo algum posso falar sobre tendências de uma casa da qual já estou afastado. Acho muito difícil um recuo da transparência do supremo tribunal. A discussão em público de questões que apaixonam segmentos da população que não compõe o mundo forense, como a discussão das células tronco, da interrupção da gravidez do anencefálico e coisas como tais, acostumaram-se com isso. E eu tenho verificado isso em minhas viagens pessoas de fora do mundo jurídico assistiram às sessões do tribunal. Será muito difícil recuar neste ponto. Eu creio que este episódio servirá de contenção necessária. [risos]
Lembrando do seu tempo de ministro, havia contendas?
Sepúlveda Pertence – Sim, eu não nego que tive, por exemplo, discussões muito acaloradas sobre temas jurídicos com outra grande vocação, além dos maiores juristas do país, que é o [ex] ministro Moreira Alves. E há poucos dias um colega daqueles tempos dizia que nós pensávamos que aquilo era briga. Digamos que era uma dança de minueto. [risos]
Brigava, mas depois jogava futebol…
Sepúlveda Pertence – É claro. Pelo menos discutia o processo. [risos]
A Constituição completará 21 anos em outubro próximo. O finado [deputado federal] Ulysses Guimarães dizia que era uma “Constituição Cidadã”. Hoje, pelos retalhos adereçados, o senhor pensa que a Constituição ainda carrega o conceito de cidadã?
Sepúlveda Pertence – Eu não tenho dúvida de que o saldo da Constituição é altamente positivo neste ensaio sempre, necessariamente, incompleto de Construção do Brasil. Até mesmo na crise do Judiciário, um dado positivo que traduz cidadania. O cidadão cresceu. A informação do cidadão sobre seus direitos está à disposição de procurar o judiciário para resolvê-los.
O senhor acredita que os Poderes da República estão genuflexos em uma situação midiática?
Sepúlveda Pertence – Sim. Esta tensão entre os Poderes em geral, muito especialmente em relação ao poder Legislativo e ao poder Judiciário é universal. Seja aquilo que vivi como advogado ou como juiz em toda a minha vida. É a arena, no bom sentido, do Poder Judiciário. É obvio que aqui, com um ambiente de completa e, às vezes exacerbada liberdade de imprensa em que nós vivemos, a falta de sintonia, a falta de “sincronicidade” de tempo entre o Judiciário e a imprensa sempre levarão a essa tensão. Esse fenômeno, que não é brasileiro, é universal, do que se tem chamado a publicidade opressiva sobre tudo acerca dos processos criminais.
A imprensa, colaborando na descoberta de eventuais práticas criminosas, e na mesma semana não só esconde os feitos como os condena. E o Judiciário tem outros compromissos. O processo penal não existe para punir com maior rapidez possível o eventual praticante de um crime. Ele existe exatamente para que um julgamento, seja pela condenação, seja pela absolvição, corra segundo as regras do jogo de um estado democrático de direito, cumprindo todas as garantias. Então, esta diferença temporal é inevitável. Quem sabe um dia isto será mais contido. Mas eu digo que é difícil. E muito.
Em 1995, o senhor afirmou que a justiça estaria distante. O senhor levantou questões sociais sobre o relacionamento da Justiça. Hoje houve uma evolução ou uma involução nesse aspecto?
Sepúlveda Pertence – Bem, é claro que o Judiciário se abriu mais à sociedade, e nisto, não só a imprensa teve papel relevante, como o próprio regime constitucional que vivemos. Costumo dizer que pelo menos não conheço uma constituição que tenha apostado tanto na solução jurisdicional de conflitos. Não só na solução tradicional de conflitos interindividuais e da repressão penal, mas também de conflitos coletivos. A abertura da ação direta de constitucionalidade, sem paralelo no mundo quanto ao poder de provocar o controle abstrato do supremo tribunal e este poder imenso que o tribunal exerce da suspensão cautelar da lei, às vezes, dias após sua promulgação. As ações coletivas, a substituição processual conferida aos sindicatos. Tudo isso, evidentemente, abriu o judiciário para a sociedade. Abriu, o que é positivo na medida em que se viabilizou a defesa de direitos, sobretudo aqueles direitos anteriormente sem sujeito. Os direitos chamados de direitos difusos, sobre meio ambiente, de consumo de massa, etc. Tudo isso foi aberto, com uma exposição imensa.
Foi então que surgiu a tese de que o Judiciário só funciona “para as pessoas com dinheiro”.
Sepúlveda Pertence – Isso é um dito. E eu repito o que lhe disse há quatorze anos: “É preciso distinguir os casos”. Um seria uma análise de sócio-psicologia judicial, o que medita o sentimento de classe. Poderá levar este ou aquele juiz a ter um preconceito creio que, na imensa maioria inconsciente, de classe em julgamento preliminares. Agora outra é a própria diferença entre a repressão do crime do chamado “pé-de-chinelo” e do crime de colarinho branco. Um é um crime de rua, um crime que se pratica e depois se vê pra onde se vai fugir. E o outro é um crime cuidadosamente planejado para fugir de uma repressão penal.
Em sua opinião, o enquadramento dos crimes do colarinho branco exige uma legislação mais atualizada?
Sepúlveda Pertence – É claro que a legislação brasileira tem falhas, nem sempre facilitando a impunidade. Às vezes até punindo com normas excessivamente abertas, mas o grande problema é o equipamento do aparelho repressivo, do aparelho investigador para lidar com crimes de uma sofisticação comparada com aqueles sobre os quais se construiu tradicionalmente este aparelho repressivo. Repito: uma coisa é correr atrás do trombadinha, outra é descobrir manobras financeiras, hoje sem fronteiras, que, sejamos sinceros, muitas vezes nós, sejamos advogados, ministério público, juízes, custamos a entender o próprio mecanismo.
O senhor é favorável à opressão ou à redução dos grampos telefônicos para combater este crime que, muitas vezes, é difícil ser provado?
Sepúlveda Pertence – O chamado grampo telefônico, ou interceptação telefônica, tornou-se um instrumento indispensável para a investigação. Agora, eu não tive acesso às fontes primárias, mas os números que correm é de um incrível barateamento destas interceptações. E o que é pior: um ambiente de absoluta irresponsabilidade, com a contrapartida da utilização deste meio de captação de provas, que é o absoluto sigilo de parte daqueles que, por dever de oficio, tem conhecimento de uma gravação telefônica. E aí, realmente temo o que dizer que este concubinato da imprensa [risos] com setores da Polícia e do Ministério Público pode ameaçar, amanhã, a própria utilização deste meio indispensável da investigação contemporânea do crime sofisticado.
O Ministério Público e a Polícia estariam vazando muitas informações para a imprensa?
Sepúlveda Pertence – É óbvio. Os casos das manchetes dos últimos anos evidenciam isso. O blog de um jornalista, meu querido amigo, é a melhor pérola que eu já vi deste estado de coisas. Reproduzia-se dez linhas de um determinado diálogo, objeto de interceptação telefônica. E a coisa mais cabeluda se seguia: “Não publicamos hoje para não atrapalhar as investigações”. [risos]
Esses vazamentos de informações prejudicam o Estado democrático? Pode haver uma ruptura, um caminho mais natural para uma ditadura, mesmo que democrática?
Sepúlveda Pertence – Não existe já a “dita branda”? Eu não conheço ditadura democrática [risos]. Da que aconteceu na minha vida adulta ainda tenho lembranças muito vívidas. Mas é claro que isso não é bom para a consolidação democrática.
Os atuais valores da sociedade são muito pequenos, excessivamente baixos?
Sepúlveda Pertence – Há uma crise de valores, isso é lugar-comum. Só que a gente não sabe se é uma crise mesmo ou se são nossos cabelos brancos. [risos] Se é crise ou se é mutação de valores para outro estágio. Mas, na nossa situação, o que vejo é uma população, um setor da sociedade, justamente e “explicavelmente” ansioso por punições mais efica
zes e que muitas vezes existe um preço a pagar, garantias processuais retardam e às vezes inviabilizam. Aí a grande responsabilidade da imprensa de não gerar falsas ilusões com um noticiário precipitado que condena, na semana do escândalo, muito mais que o judiciário poderá condenar daqui a anos.
Recentemente entrevistei um senador, mais ou menos da sua idade, e ele se mostrou cético em relação ao futuro dos valores e da respectiva manutenção. O senhor concorda com a opinião do senador ou é mais otimista que ele?
Sepúlveda Pertence – Eu tendo a ser mais otimista. Tendo muito esta visão retrospectiva de que bons eram os nossos valores. Aqueles pré 68, os de 68, em relação aos de hoje. É claro que existe um novo mundo por informação por comunicação. É obvio para nós, da minha geração, por exemplo, que viveu, pelo menos uma parte significativa dela, que viveu uma intensa participação na vida política do país. A aparência de desinteresse e quase desalento da política da juventude assusta. Mas são momentos de crise e eu prefiro acreditar que eles tenderão a uma evolução para um tempo melhor que o nosso.