(*) Gilmar Corrêa
226.224 pessoas ficaram desalojadas e 116.007 desabrigadas, segundo dados do dia 15 da Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec), do Ministério da Integração Nacional. As tempestades que vitimaram milhares de brasileiros desnudaram a fragilidade dos serviços de defesa civil e a incompetência das autoridades estaduais, municipais e federais. E mostraram como é tratado com naturalidade a ocupação urbana desordenada, quase sempre turbinada pela política populista.
Na Arábia Saudita, o presidente-metalúrgico Lula da Silva disse no domingo que “descobrimos que o Brasil não estava habituado a ter projetos”. Com a devida vênia ao senhor presidente da República, continuamos sem projetos e sem hábitos. Mais de 90% das prefeituras sequer tem um plano diretor. É uma lei que define as diretrizes para ocupação de uma cidade, ou quando existe, é irresponsavelmente desrespeitada.
Está também praticamente esquecido o Estatuto da Cidade, tipificado na Lei Federal 10.257/2001, que define a política urbana e regras para organização do território do município. Esta lei detalha o que determina a Constituição Federal nos artigos 182 e 183 sobre questões como especulação imobiliária, reforma urbana e qualidade de vida. É no Estatuto da Cidade que o Plano Diretor aparece como importante instrumento de gestão para as normas reguladoras da vida na cidade.
Passados oito anos da aprovação do Estatuto da Cidade, resultado de uma forte pressão de setores organizados da sociedade, o país continua num caldeirão de desigualdades. O estoque de habitações, por exemplo, está aquém de atender as demandas. Há um déficit de sete milhões de habitações de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
E esse exército de brasileiros vive em imóveis alugados ou em sub-habitações, construídas quase sempre em locais perigosos – altos ou em áreas favoráveis a alagamentos. E são nessas regiões que estão os mais desvalidos, que perderam quase tudo, até suas precárias casas, com as inundações no Nordeste e no Norte recém-acontecidas ou com os deslizamentos que ocorreram no Sul do País no final do ano passado.
A falta de respeito com o Estatuto da Cidade e com o Plano Diretor escancara as deficiências das prefeituras. Sem equipes técnicas e com falta de dinheiro, quase sempre como resultado do desinteresse do prefeito e da vontade da câmara municipal, a população dos municípios vive desamparada. As prefeituras são o retrato do descaso. Sequer conseguem apresentar projetos viáveis para obtenção de recursos federais. E muitas vivem um caso crônico de inadimplência.
Nesse cipoal de incompetência, de falta de interesse e descaso, a lei da sobrevivência é a única que tem vez e voz. Necessitados de casa e comida – direitos essenciais segundo a Carta Magna – os desvalidos acabam alimentando um gigantesco sistema de aproveitadores, muitos deles ligados a partidos políticos ou a facções de cabos eleitorais. Estes são necessários para eleger candidatos que justamente deveriam ordenar e fiscalizar a ocupação urbana e respeitar e fazer as leis.
A natureza pode ser responsabilizada por uma parte do sofrimento desses brasileiros, mas certamente o homem provocou a maioria dos seus problemas. Não se trata de somente destruir a natureza que porventura estaria provocando consequências no clima, mas da ocupação dos espaços. Há casos em que será necessário o deslocamento de toda uma cidade em virtude de construção em local impróprio. Como ninguém se preocupou com isso, quem sofre é o mais pobre, o desvalido. Com a palavra, as senhoras autoridades.