O sociólogo Sérgio Amadeu explica como o PL que altera o conceito de crimes na internet seria uma tragédia para os usuários da rede no Brasil
(*) Ana Carolina Castro e Karina Trevizan
Ativista pela liberdade na internet, o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira faz parte das manifestações contra o Projeto de Lei do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) que estabelece novas formas de enquadramento para crimes na internet. Os opositores ao Projeto alegam que as medidas infringem a liberdade de acesso ao conteúdo e a privacidade de navegação.
Além de expor argumentos contundentes contra as medidas propostas por Azeredo, Amadeu é defensor do software livre e da democratização do acesso à internet. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, o sociólogo é Professor Titular do Programa de Mestrado em Comunicação na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo.
Ao leitor que espera ler a seguir uma entrevista com um defensor de ideias radicais, o próprio entrevistado antecipa: “radical é ele [senador Azeredo] que quer mudar absolutamente todo o funcionamento da internet. Eu sou um conservador, eu quero manter a internet funcionando livre”.
Como seria o Brasil se o PL do senador Azeredo fosse aprovado?
Primeiro, se instalaria uma grande insegurança e incerteza na comunicação em rede. Segundo, a indústria do copyright e a indústria de intermediação iriam usar vários artigos dessa lei para ameaçar uma série de pessoas que compartilham arquivos na internet. O projeto do senador Azeredo permite que sejam consideradas crime algumas práticas corriqueiras das pessoas na rede. Se você destrava as músicas de um CD e passa para o seu computador, por exemplo, eu posso interpretar que você está violando o a Lei. Se você baixa um vídeo como “Tropa de Elite”, mesmo que você não tenha colocado na rede, você está infligindo a Lei.
Mas e quanto à questão do direito autoral?
Na verdade, esse projeto é perigoso porque na questão do direito autoral ficam muitas dúvidas. A maioria das pessoas não faz downloads para ganhar dinheiro. As pessoas compartilham arquivos porque compartilhar é o elemento mais eficiente que você pode ter na rede, eu não acho que é um crime. Eu acredito que o Artigo 22, por exemplo, vai gerar uma situação nova para os provedores de acesso. Surgirá uma nova linha mundial, principalmente das indústrias do copyright, que responsabiliza o provedor, já que eles não conseguem com suas campanhas impedir que as pessoas troquem arquivos. Assim, como eles não conseguem, discutiu-se que o melhor é criminalizar os provedores. Tem-se feito isso na França com a Lei do [Nicolas] Sarkozy, só que não é tão dura quanto a do Azeredo, porque na questão do copyright ficaria uma dúvida: você não está fazendo nada para ganhar, está simplesmente compartilhando. Então, é difícil você ser considerado um violador de copyright porque você vai alegar o que se alega para existir uma biblioteca: que é o uso justo da obra cerceada pelo copyright. Já com a lei do Azeredo não. Você teria violado a segurança de dispositivo de rede digital.
Então podemos dizer que o projeto deixaria o direito autoral acima do direito de acesso a informação?
Sem dúvida. O projeto tem essa ideia muito sólida, ele colocaria o direito autoral acima de vários outros direitos, inclusive o da privacidade.
Como perderíamos o direito à privacidade?
Um policial pode entrar na minha casa, desde que ele tenha uma ordem judicial ou que ele tenha absoluta certeza de que lá está acontecendo um crime e que a sua entrada evitará o crime. São as duas condições que permitem a entrada de um policial na minha casa, e são exceções. O que está acontecendo com a lei do Azeredo é que eles estão transformando a exceção em regra. E não podemos concordar que a sociedade viva em um estado de exceção. O provedor será transformado em um agente privado, um cão de guarda da polícia. Se o provedor recebe uma denúncia, ele tem que imediatamente passar para as autoridades. Sabemos que os provedores recebem inúmeras denúncias improcedentes, brincadeiras, boatos. A própria polícia recebe, mas tem um preparo para saber quando é uma denúncia que redunda em uma investigação ou não. Agora você acredita que o provedor vai fazer esse papel de triagem? Qualquer denúncia que chegar a ele vai ser transformada em um caso de polícia. Por quê? Porque caso contrário ele passa a ser cúmplice do crime. É uma lei completamente descabida.
Seria como se ao invés da polícia entrar na sua casa se o senhor cometesse um crime, ela ficasse permanentemente olhando você dentro da sua casa?
Exatamente. A polícia agora é o seu vizinho contratado que fica lá dentro te olhando o tempo todo. Uma outra medida nefasta é que a lei propõe guardar logs de navegação [relatório que mostra o que cada computador fez na internet] das pessoas por três anos. O que ele quer com isso? Deveria ser crime se o provedor guardasse esse log por mais de seis meses. É absurdo manter guardado o meu rastro digital. Não é possível aceitar isso, sob pena de ter-se implantado uma sociedade da vigilância, do controle. Essa lei cria uma insegurança, novos negócios com base no temor.
O senhor acha que essa lei, mais do que tentando prevenir os crimes na internet, está atendendo a interesses particulares?
Está atendendo aos interesses dos bancos que querem repassar os custos da segurança que deveria ser deles. Atende ao interesse da indústria de copyright, que vai fazer a festa com essa lei aprovada. O que as pessoas não entendem é que a melhor forma de divulgar um livro, por exemplo, é na rede. Eu tenho lançado os meus livros na rede, pois é na rede que ele chega mais longe.
O projeto de lei deixaria o Brasil na contramão desse tipo de possibilidade?
Ele não impede que eu faça isso. Aí já seria demais. O que ele quer é colocar um modelo de negócios ultrapassado, que não tem a ver com a internet como padrão ético e moral passível de crime. O que nós sugerimos é que seja feita uma lei de cidadania digital. Quais são os direitos de uma pessoa na internet? Pelo projeto do Azeredo, algumas condutas que a sociedade deve apenas desestimular, serão transformadas em crime e punidas com pena de prisão.
Que condutas são essas, por exemplo?
Se você mandar spam deve ser multado, punido. Agora, você deve ser preso se você participar de uma rede de trafico internacional, de contrabando. O crime não é o spam. Ele deve ser considerado uma prática que viola o Código Civil porque me cria incômodos. Quem faz deve ser multado sim. Agora, ser preso? Nossas cadeias estão tão vazias, não é?
O projeto do senador Azeredo em pouco ou nada ajuda a combater a pedofilia na internet, por exemplo. Que medidas seriam efetivas para combater esse tipo de crime?
Nós já temos crimes demais, só precisamos aplicar as leis que criminalizam. Pedofilia já é crime. Nós precisamos é de uma polícia capacitada para investigar pedófilos na rede. Na internet você tem o pedófilo ‘nerd’. A maior parte da pedofilia é cometida, infe
lizmente, em famílias e igrejas. O problema é: quais crimes são típicos da rede?
A invasão de um sistema, por exemplo.
Sim, aí é crime. Mas não podemos fazer uma lei baseada em uma frase vaga, você tem que ser preciso.
Deveríamos, então, remover do projeto do Azeredo a parte que envolve invasão de privacidade e deixá-lo mais preciso?
Mas eu não preciso do Azeredo para isso. Precisamos antes de tudo definir quais os direitos do cidadão na comunicação em rede. Por exemplo, eu tenho o direito de navegar sem ser observado? O senador Azeredo acha que não. Ele quer dar uma de Rede Globo, que põe na novela [“Caminho das Índias”] um menino que invade computadores. Uma bobagem de uma noveleira que quer exagerar uma situação para criar uma sociedade ‘vigilantista’. O medo não é um bom legislador. Teve um juiz que falou pra mim em Brasília: “você está sendo muito radical em não concordar com nada do projeto do Azeredo”. Eu respondi: “radical é ele que quer mudar absolutamente todo o funcionamento da internet”. Eu sou um conservador, eu quero manter a internet funcionando livre e melhorar colocando alguns pontos. Eu quero um regulamento civil da internet, com os meus direitos lá, e depois a gente vê que violação deve ser crime.
Quem é esse juiz?
Na verdade é um desembargador de Minas. Não me lembro o nome. O importante é que você tem o direito de entrar numa rede anonimamente. Se você entrou na rede e cometeu um crime de injúria, calúnia ou difamação o que foi difamado simplesmente pede a ação da policia que vai ter o IP do tal anônimo.
O PL do Azeredo então seria um serviço de preguiçoso?
Mais do que isso na verdade. Vão agir com violência contra cidadãos comuns. Porque na verdade eles estão interessados em alguns crimes e não nos crimes que mais afetam a população. Eles estão interessados mesmo em salvar modelos da indústria de copyright.
O senhor citou o benefício que teriam os grandes bancos, mas focando no caso do governo: o ministro Tarso Genro ter afirmado que vai se posicionar contra o projeto do senador Azeredo, na sua opinião, é uma sinalização de que o governo pode não estar envolvido?
Esse governo não está envolvido com essa lei. Tem setores do governo, da Polícia Federal que seriam beneficiados. Tem o interesse de obter condições ideais para sua investigação a qualquer momento. Para eles, quanto maior o ‘vigilantismo’ melhor. Aí se inverte o ônus da prova: eu tenho que provar que sou inocente.
Trocaríamos a presunção da inocência pela presunção da culpa?
Exatamente, é uma inversão completa. Quem vigia o vigia? É a minha maior pergunta.
Ocorreu em São Paulo o evento que comparou o PL com o AI-5. Que semelhanças o senhor vê entre o AI-5 e o projeto?
Esse nome foi dado porque quando se pensou em articular o ato estávamos próximos do dia 31 de março, aniversário do golpe militar. Chamamos de AI-5 porque é a decretação de um Estado de exceção. É um artigo na Constituição, então dará um ar de constitucionalidade, de legalidade, quando na verdade é uma ditadura. Não dá para transformar o Brasil na China, dar um ar de legalidade à ditadura. A lei do Azeredo é uma tragédia. Ela é genérica, absurda, inócua.
O PL representa um retrocesso em termos de livre acesso ao conteúdo? Voltaríamos à era da obrigatoriedade de comprar CDs para poder ouvir música?
Não vão conseguir, essa é a questão. Seria um retrocesso sim, pois ela seria aplicada seletivamente. [As gravadoras] dizem que estão perdendo um bilhão e tanto. Como é feita essa conta? Eles provavelmente estimam os downloads feitos e dizem que todo mundo que faz essas trocas de arquivos iria comprar os CDs. Não iria. Se fosse pago, não iriam comprar essas músicas. O que sustenta o monopólio da Microsoft, que tem o sistema operacional mais usado? A pirataria.
Por quê?
Se eu chegar em uma sala de qualquer faculdade e perguntar: ‘quem aqui comprou uma licença de Office, que custava mais caro que o computador?’. A resposta seria ‘ninguém’. Se a ABES [ Associação Brasileira das Empresas de Software, que controla a pirataria nesse setor] quiser, ela pode chamar a Polícia Federal e invadir a casa de todo mundo, mas por que não fazem isso? Porque a pirataria é funcional à manutenção de um número de usuários daquele software, que depois vão para uma empresa e já estão treinados para operar aquele software. Então, a pirataria é uma piada, é funcional para a indústria do copyright. Eles nunca viveram de licença de usuário comum. É uma piada. Eles vivem sim de cobrar licenças de empresas, porque aí eles vão com a polícia lá e multam as empresas que não estão legalizadas. O modelo de negócio do software é sobre empresa, e não sobre usuário residencial.
É um caso de complacência útil?
Sim, porque se eles invadirem a casa de dez estudantes e divulgarem, as pessoas que tem software ilegal vão mudar. Tem alternativas como o Linux, por exemplo. Eles não vão invadir a casa dos meninos de classe média, pois sabem que nesse caso, a pirataria é o que banca o negócio deles na pessoa jurídica. Eles não vão atacar a pessoa física.
Se há risco e custo para as empresas, por que softwares livres não emplacam?
Porque existe uma amarração. As piores prisões são as prisões lógicas. Para uma empresa que está com todos os seus arquivos do seu banco de dados feito em Access, migrar tudo isso é muito difícil. Mas algumas migram para reduzir custos e garantir estabilidade. As Casas Bahia, o Banco do Brasil, o Carrefour, e outras muitas empresas estão migrando para o Linux.
Isso pode virar uma tendência?
Já é uma tendência no mundo. Não há domínio no mundo das redes, mas no sistema operacional do computador as pessoas estão amarradas. E a pirataria ajuda. Um exemplo: eu estava conversando com um professor que dá aula de design e ele perguntou porque não se coloca OpenOffice na faculdade. A resposta é porque as pessoas estão acostumadas com outros ícones. Mas podemos mudar com a maior facilidade e será muito melhor. No entanto, as pessoas vão estranhar em um primeiro momento, pois em casa elas usam o Office sem licença de uso e a Microsoft fica feliz. Perguntaram para o Bill Gates há uns anos atrás: ‘e a China pirateando seus softwares?’; e ele respondeu: ‘para mim é ótimo!’. Quanto mais piratear, mais ele mantém o usuário aprisionado.
Como teve início essa “amarração”?
Essa amarração foi obtida por um grande golpe de mestre junto à IMB. Bill Gates fez um acordo com a empresa que vendia computadores na época, a IBM, para que todo PC que saísse da IMB tivesse o DOS. Aí a IBM lançava esses computadores com o DOS e todos copiavam a arquitetura da IBM. Faziam fábricas que não eram da IBM e montavam computadores. Isso fortaleceu o padrão IBM. Não era ruim porque a IBM vinha com o nome IBM, então mesmo que houvesse
alguém fabricando no país, ela entrava com força. As pessoas que copiavam achavam que o software também podia ser copiado. O que a Microsoft fez foi montar escritórios de advocacia em todo mundo e cobrar licenças de propriedade. O hardware é aberto, o software não.
No Brasil, além de uma minoria ter acesso à internet, temos o pior serviço pelo maior preço. Sendo assim, não é antecipado apontar a rede como um grande instrumento de democratização da informação?
O desenvolvimento da internet é baseado na liberdade, e a internet pode fazer coisas fantásticas que a gente nunca imaginaria. Um estudante de Pau Sul [França] que tenha banda larga tem as mesmas condições de pesquisar que um estudante de São Paulo. Antes isso era impossível. Agora, no Brasil nós temos um fenômeno que é a desigualdade social. Existem pessoas que não acessam a internet na Europa por opção cultural, e no Brasil é por opção financeira. Essas pessoas estão sendo excluídas digitalmente. Paralelo a isso está a expansão no número de pequenos empresários que dão acesso a internet por um baixo custo, as lan houses, o crescimento no número de telecentros e programas de incentivo do governo, que fizeram com que um número muito grande de brasileiros pudessem ter acesso à internet. Mesmo a maioria dos brasileiros não tendo acesso ainda, nós já somos os maiores usuários de grandes redes sociais, já somos os grandes usuários da internet em número de horas por semana.
E o que é preciso para incluir mais “excluídos digitais”?
Acredito que precisamos de um barateamento no custo da banda larga, que é uma das mais caras do mundo, e incentivar os prefeitos a abrir o sinal gratuitamente. Ao contrário do que dizem, em todas as cidades onde isso ocorreu a compra de computadores cresceu muito. A gratuidade da conexão incentiva o uso da rede. É preciso elaborar uma política pública para enfrentar esse problema. A comunicação a em rede permite que você articule outras políticas, por exemplo, de quebra dos modelos de reprodução da miséria e de envolvimento dessas pessoas em projetos educativos e de desenvolvimentos sociais e econômicos.
O acesso à internet, então, seria uma das causas do desenvolvimento, e não consequência?
Eu acredito que o acesso é um elemento básico para se aplicar outras políticas públicas de desenvolvimento. Eu não acho que o Brasil vai ficar estagnado, os dados que temos indicam que aqui é onde mais cresce o acesso no planeta, mas ainda estamos distantes [do ideal]. Enfrentamos uma desigualdade socioeconômica no país absurda, que a rede permite, inclusive, atenuar. Temos vários exemplos. Me vem à cabeça o Cleber, um adolescente que freqüentava um telecentro na Cidade Tiradentes [periferia de São Paulo]. Ele tinha poucas perspectivas, iria trabalhar em empregos de baixa remuneração, mas tem um enorme talento nato para programação. E ele começou a mexer nos computadores e se desenvolver autonomamente, é um autodidata no mundo do software. Ele se envolveu com a comunidade e hoje é um programador. Ganha muito mais do que ele ganharia se permanecesse naquele ensino técnico das velhas profissões consolidadas. Isso já era! Como esse menino, há por aí milhares de outros que estão sem poder desenvolver o sue talento. A inclusão digital permite um salto de padrão, de realidades.
Então podemos entender a rede como ferramenta de educação?
Uma vez na rede, é possível desenvolver possibilidades de interação ou de se desenvolver autonomamente. Nem todos tem potencial autodidata, então deve haver alternativas de orientação para que todos possam se desenvolver. A rede não é a panacéia de tudo, mas sim um fenômeno interessante, uma plataforma por onde passam conteúdos, serviços e meios de pagamentos. Então, se você se organiza, você pode usar a rede para gerar inclusão social também. A rede tem o potencial de afetar toda a atividade de intermediação, do jornalista ao professor.