(*) Ucho Haddad
Os principais “jornalões” brasileiros dedicaram suas respectivas edições dominicais para assuntos conceitualmente idênticos. Criticar o governador de São Paulo foi um dos temas preferidos. José Serra deseja ver seus domínios infestados de alcaguetes, todos empenhados em dedurar os que desrespeitarem a lei antifumo, que entra em vigor no próximo dia 7 de agosto. Que o tabagismo faz mal à saúde todos sabem, mas não se pode apelar para condenáveis práticas da era plúmbea como forma de garantir a eficácia de uma lei. Muito acima do direito de livre escolha de quem deseja se entregar à nicotina e seus malefícios está a prerrogativa daqueles que abominam o fumo e seu olor.
Conviver em sociedade exige bom senso, até porque o direito de uma minoria não deve se sobrepor ao direito da maioria, e vice-versa. Quando o bom senso, a lógica e a coerência saem de cena, abre-se uma brecha para teorias como a de Serra. Nesse caso, o caminho da lógica recomenda a contestação, pois nada é mais abominável que um alcaguete a serviço de inquisidores. O grande problema do ser humano é, desde a pré-história, o respeito ao próximo, tese que só prevalece nas reuniões templárias, onde cada um finge ser fiel cumpridor das doutrinas. Nos últimos tempos, falar sobre ética e discuti-la sob todos os vértices tornou-se a única saída para os que agem de maneira contraposta. Ou seja, são antiéticos do despertar ao apagar dos olhos.
Muitos são os irresponsáveis que, por interesses outros, pregam que ética profissional se aprende nos bancos das universidades. Na verdade, a ética é una, indivisível. Não é como automóvel, que tem versão sedan, conversível e outros modelos. Ou é ética, ou não é. Ética é algo que o ser humano aprende no seio familiar e, via de regra, nos primeiros sete anos de vida, o chamado primeiro setênio. É exatamente nesse período que o homem assimila os conceitos que servirão de esteio moral para o resto de sua vida. Se no caminho de sua existência ocorrer algum tropeço, retomar a ética perdida em parcos capítulos da vida é tarefa simples.
Criador da companhia aérea Gol e maior empresário de ônibus urbanos do planeta que se tem notícia, Constantino Oliveira, o nada ortodoxo Nenê, é o mais novo integrante da lista de procurados da Justiça do Distrito Federal. Acusado de ser o mentor intelectual e contratante de dois homicídios e de outro mal sucedido, Nenê Constantino é a bola da vez na imprensa brasileira. Deixa temporariamente de cena a doença da ministra Dilma Rousseff, que cede lugar à grande escapada do inventor da Gol.
Não faz muito tempo, para proteger o mais oportunista banqueiro tupiniquim, os ministros do Supremo Tribunal Federal, pressionados por Gilmar Mendes – um “dantesco” incorrigível –, decidiram que a presunção da inocência continua valendo. Ora, um anúncio desnecessário, pois o tema é tratado com clareza e galhardia por nossa Carta Magna. Mas os magistrados decidiram também que o foragido tem a mesma prerrogativa dos acusados que não fogem. Isto é, podem recorrer das decisões judiciais mesmo que em lugar incerto e não sabido.
Antes do advento do atual viés “policialesco” do Estado, onde todos são vigiados o tempo todo, a polícia só não encontrava um procurado se não quisesse ou, então, se fosse obrigada a flertar de soslaio determinadas situações. Dependendo do que reza uma decisão judicial, “não encontrar” um condenado ou acusado, em São Paulo, por exemplo, pode custar R$ 10 mil, no máximo R$ 20 mil. O que não significa que o milionário Nenê Constantino esteja custeando a peso de ouro a sua liberdade.
Mas Nenê, que por enquanto é apenas réu, tem a seu favor a tão propalada presunção da inocência, o que lhe dá o direito de, em caso de condenação, apelar para todas as instâncias seguintes da Justiça, inclusive àquelas onde bem sucedidos são os causídicos que defendem os interesses dos que abrem sem dó as torneiras de suas bisonhas cornucópias.
Deixando de lado as filigranas jurídicas e os arremedos do Judiciário, retomo a questão da ética, lembrando que discuti-la não me serve como escudo e nem mesmo como alcatifa existencial, sobre a qual alguns estão acostumados a depositar o ranço pecaminoso da incoerência. Na edição de ontem dos jornais brasileiros, duas reportagens roubaram minha atenção. A primeira delas tratava de Nenê Constantino, que, segundo o “Estadão”, estaria internado no Hospital Sírio-Libanês, tábua de salvação refinada daqueles que enfrentam problemas de saúde. Na condição de foragido, Nenê teve a vida bisbilhotada por jornalistas do carrancudo jornal paulista, que telefonaram para o hospital e confirmaram sua internação. Mas isso não resultou de jornalismo investigativo, mas da “deduragem” de algum paciente do badalado hospital da Paulicéia Desvairada. Ora, se a ideia de José Serra pode ser condenada, o alcaguete do hospital não deveria servir como fonte.
Já a não tão “modernosa” “Folha de S. Paulo”, outrora orgulho dos paulistanos, trouxe matéria sobre o cirurgião plástico Hosmany Ramos. Condenado por “homicídio, roubo de joias e carros, tráfico e contrabando”, Hosmany é um foragido da Justiça brasileira. Vivendo dourada e nababescamente em Paris, o cirurgião, que se valeu do interregno natalino do cumprimento da pena para não voltar ao cárcere, ganhou exagerado espaço na Folha para, em entrevista, falar da sua condição de fugitivo e promover seu livro, recentemente lançado.
É exatamente nessa tênue linha que separa o fato jornalístico do interesse capitalista que está fincada a catacumba da ética. Sob os olhos da lei, Nenê Constantino ainda é um inocente. E assim permanecerá até que sejam exauridas as fases recursais. Não tenho procuração para defender o empresário, contra o qual já escrevi inúmeras vezes, especialmente por sua genuflexão diante de um pedido de favor do presidente Lula da Silva, que culminou com a misteriosa compra da Varig.
Quando algum incauto desembarca no mundo do jornalismo acadêmico – aqui não estou a julgar o quilate dessa ou daquela escola – de chofre lhe dizem que pensar em mudar o mundo através da profissão não passa de um sonho carregado de utopias. Uma abissal inverdade, pois o jornalismo, se bem exercido, pode mudar muitas coisas. Pode recolocar a sociedade no trilho de seus direitos e obrigações, pode restabelecer a lógica e a coerência. O jornalismo, muito antes de ser uma relação de fé com a informação, é a militância que faz da opinião verdadeira o caminho para a sustentação da democracia.
Quando o interesse financeiro fala mais alto que a coerência, nenhuma mudança é possível. Nem mesmo as mais fáceis e simples. Tomo como exemplo a doença de Dilma Rousseff. Tão logo foi anunciado oficialmente o calvário que ministra teria de enfrentar, a semanal “Veja” trouxe na capa de uma de suas recentes edições a mais deplorável das chamadas: “A candidata e o câncer”. Neste caso, a falta de ética ocorreu porque alguém, interessado na fragilidade política de Dilma, financiou essa barbárie midiática. Uma coisa é a política fazer uso indevido do problema vivido pela ministra e candidata à sucessão presidencial, outra é a imprensa ser aética por questões meramente materiais e financeiras e colocar a fragilidade de um ser humano como armadilha para tostões.
Para finalizar, sem direito a delongas, retomo o antagonismo que separa Nenê Constantino e Hosmany Ramos. Ainda inocente e sem nenhuma sentença condenatória prolatada, mesmo que as evidências o condenem, o empresário foi “dedurado” porque escândalos rendem manchetes, que por sua vez abrem caminho para o vil metal. Condenado em todas as instâncias da Justiça e dela foragido, o cirurgião foi tratado como o mais genial literato e maior inocente de todos os tempos. Como citei acima, ética é algo uno, que não coaduna com a cizânia furibunda que alguns tentam lhe impingir. De tal maneira, não se pode admitir que a ética tenha roupagens distintas para cada ocasião.
Como não frequentei os bancos do jornalismo acadêmico, vivo feliz, na modernidade da nossa querida e idolatrada Botocúndia, a escrever com base na ética e coerência a mim deixadas como preciosa herança por um humilde e genial engraxate e entregador de armazém. Que Deus o tenha!