(*) Roberto Romano da Silva
Como anunciei no artigo anterior, o golpe de Estado começou sua carreira pública no Congresso Nacional. Parlamentares presos às vantagens políticas, esquecidos das formas republicanas e democráticas, desejam conceder outro mandato ao ocupante do Planalto. Os tucanos inauguraram tal recurso e devem estar arrependidos. Mas jamais darão o braço a torcer, dada a sua peculiar arrogância. Quando abriram as portas da reeleição (delirando com a profecia de Sergio Motta, que anunciava vinte anos no poder para seus correligionários) eles não imaginaram a brecha na ordem pública, a subversão que patrocinavam com ajuda interesseira dos sempiternos áulicos. Estes, agora, iniciam a dissolução do regime, abrem as portas para a ditadura perene. Cito e comento um trecho das “Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado” de Gabriel Naudé (1624). Os primos tucanos e petistas as ignoram. Os segundos, porque não gostam de ler. Os primeiros, porque se julgam mais espertos do que Maquiavel.
FHC e seus liderados usaram a dissimulação para conseguir o retorno ao Palácio. O mesmo faz o atual presidente. Ambos fingiram não se interessar pela manutenção no cargo. Ambos, para os seus aduladores, agiram com extrema prudência. Ora, segundo Gabriel Naudé a prudência política não tem outro fim a não ser realizar, por diversas artimanhas, os negócios a que um homem se propõe. Tais negócios só podem ser de duas ordens: uns fáceis e comuns, outros extraordinários, desagradáveis e difíceis. Logo, existem duas prudências políticas. A primeira, comum e fácil, não quebra as leis e costumes do país. A segunda, extraordinária, é mais difícil. A prudência compreende a fraude “porque, para sermos verdadeiros, se consideramos bem sua natureza e a necessidade que dela tem os políticos, não pode mos dizer que ela seja injusta, viciosa ou desonesta”. Naudé cita Charron: justiça, virtude e probidade do governante divergem do que se pratica entre particulares. Suas sendas são mais amplas e livres devido à “grande, pesada e perigosa carga que ele carrega. É por semelhante motivo que ele deve usar um passo que pode parecer aos demais ensandecido e sem regra, mas que lhe é necessário, leal e legítimo. Ele precisa, de vez em quando, se esquivar e agir com a esquerda, misturar prudência e justiça e, como se diz, cum vulpe junctum vulpinarier (ser mais raposa do que a raposa). Os agentes, núncios, embaixadores, legados servem para espiar os atos dos outros príncipes e para dissimular, cobrir, disfarçar as ações de seus mestres”. Luis 11, diz Naudé, “o mais sábio e avisado dos nossos reis, tinha por máxima principal de seu governo que qui nescit dissimulare nescit regnare (quem não sabe dissimular, não sabe mandar). O imperador Tibério : nullam ex virtutibus suis magis quam dissimulationem diligebat (De todas as virtudes que ele possuía, nenhuma ele mais apreciava do que a dissimulação). A maior virtude, hoje na corte, é a desconfiança de todos, a dissimulação diante de cada um, dado que as pessoas simples e sinceras não podem servir ao ofício de governar pois traem a si mesmas e ao Estado”.
Não apenas essas duas partes (desconfiar e dissimular) são necessárias ao governante. Ele precisa, diz Naudé, da ação e da comissão, “quando deseja vantagens para atingir seus alvos por meios equívocos, obtendo com belas palavras (…) o que a dificuldade do tempo e dos assuntos impede ganhar de outro modo, conciliare sibi animos hominum et ad usus suos adjungere (citação livre de Cícero: compre pessoas e as use para seu alvo)”.
Sábio Naudé! Dissimulando, dois presidentes civis nos legaram a reeleição, com a mão do gato de parlamentares que não merecem o título. Eles representam o príncipe e seus próprios alvos. A comédia do “desinteresse” logo vai acabar. O governante, “volente o nolente”, com face pesarosa “aceitará o sacrifício”. Teremos a ditadura plebiscitária a que sempre aspiraram os donos da política, desde a era Vargas. Depois, virão os novos Filinto Müller. Aguardem.