(*) Ucho Haddad –
Não é de hoje, o Congresso Nacional, a exemplo do que acontece em quase todas as casas legislativas do País, é um clube privado de negócios. Quando nenhum escândalo ronda uma das duas Casas, todos estão livres para negociatas de toda ordem. Mas nesse redemoinho de atos desabonadores há uma ínfima minoria que se salva, passando ao largo de atitudes consideradas espúrias. Chegar à conclusão de que o Congresso nem de longe representa o interesse popular requer um pequeno empenho no campo da aritmética. A campanha de um candidato a deputado federal, por exemplo, custa, no Nordeste, perto de R$ 2 milhões, dinheiro desembolsado ao longo de noventa dias. Se eleito – aqui é bom dar destaque ao condicional – o parlamentar receberá R$ 800 mil em quatro anos de mandato. Ou seja, há uma enxurrada de diletantismo nesse escandaloso desencontro de contas.
Se as contas em tese não batem, na prática elas obrigatoriamente terão de fechar, se possível para mais. No jogo imundo em que se transformou a política nacional, fácil é perceber quando um parlamentar abandona inexplicavelmente a lógica para defender os interesses nem sempre ortodoxos de grupos que o apoiaram ou o apoiarão. E falar em apoio significa dinheiro, muito dinheiro. Em outras palavras, se não for dívida de campanha, a defesa de um interesse é uma nova e inesperada fonte de renda.
No contraponto, se nenhum interessado em assuntos parlamentares desembarcar no Congresso Nacional com sua cornucópia escancarada, alguma saída terá de ser encontrada para saciar a volúpia negocial de muitos parlamentares. E nas entranhas obscuras dos regimentos do bicameral Congresso é que repousam irrequietas as senhas para manobras condenáveis, como as que agora chacoalham os pilares do Senado Federal.
Homem público de trajetória ilibada e irretocável, o senador gaúcho Pedro Simon (PMDB) lembrou com muita propriedade que o ex-diretor-geral do Senado, Agaciel Maia, é cria do atual presidente da Casa, José Sarney. Como se não bastasse essa relação nada estóica entre criador e criatura, Sarney e Agaciel cultivam intimidades além das vidraças do parlamento brasileiro. O maranhense que se elegeu senador pelo Amapá é padrinho de casamento da filha daquele que vem sendo acusado como o senhor dos atos secretos.
A resistência em determinar uma devassa no Senado, como forma de tentar salvar a credibilidade da Casa que na teoria deveria defender os interesses do povo brasileiro, mostra o grau de comprometimento de José Sarney com o criminoso status quo que há décadas dita o ritmo da vida parlamentar nacional.
Se a política brasileira pode ser comparada a um serpentário, José Sarney é uma daquelas venenosas e bem criadas cobras, cuja peçonha mata em doses homeopáticas, sem que a vítima perceba que está caminhando na direção da própria morte.
O poder permite ao suposto poderoso a convivência com aduladores, situação que faz de um político qualquer um ser fora do contexto cotidiano, como bem lembrou Luiz Inácio Lula da Silva, que há dias declarou que o presidente do Senado não pode ser tratado como uma pessoa comum. Diante de tão evidente currículo, Sarney deve, sim, ser tratado de maneira distinta.
Homem letrado na verdadeira acepção da palavra, José Sarney é membro da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira (38) que pertenceu ao também maranhense Graça Aranha, autor do romance Canaã. Quando entra em cena alguém paramentado com o fardão da ABL, o que vem à mente é que no mínimo a gramática será contemplada em todas as suas nuances, independentemente da situação enfrentada pelo acadêmico.
Sem se intimidar com sisudez da Academia Brasileira de Letras e com o rococó do fardamento oficial, a psique humana não apenas comanda o comportamento humano, trazendo à lume a verdadeira essência do homem, mas faz da sequência comportamental – aqui inclui-se os gestos e a fala – a tradução mais pura e cristalina da ausência da verdade. Desde o primeiro discurso pós-crise, José Sarney tem se esforçado para ocultar a verdade ou, pelo menos, por ela não ser trucidado. Sempre nervoso e pouco convincente em seus pronunciamentos, o que o obriga a uma fala desconexa em termos gramaticais, o presidente do Senado nem de longe sabe o que é persuasão.
Com livros publicados, o que não lhe confere excelência com a pena, José Sarney, que deveria fazer bom uso da gramática, transformou o viés coloquial e intimista das palavras em auto-armadilha. Cobrado por seus pares a tomar uma atitude enérgica e imediata capaz de sepultar os escândalos que tomam conta do Senado, José Sarney, o parlamentar, endossa as cobranças como forma de arrefecer os ânimos mais exaltados. Por outro lado, José Sarney, o letrado, ao fazer uso inadequado de palavras deixa escapar o seu desejo de nada fazer.
Ao afirmar que “ninguém vai acobertar ninguém”, Sarney, que minimamente deveria saber o significado dos vernáculos, nega aquilo que deveria ser a saída para o caos, deixando evidente que outra pasmaceira está prestes a dominar o mais novo escândalo da política brasileira. Se por um lado José Sarney garante que medidas moralizadoras serão adotas, por outro ele próprio nega aquilo que foi garantido. A psicologia, em todas as suas correntes, evidencia tal fato. Tudo aquilo que incomoda o ser humano é seguido de uma antítese compensadora.
Como presidente do Senado, Sarney não pode dizer que nada será feito, mas como ser humano ele compensa, de maneira inconsciente, através da gramática a pedra que surgiu no caminho. Até no mais mambembe dicionário da língua portuguesa o sinônimo do pronome indefinido “ninguém” aparece grafado como “nenhuma pessoa”. Sendo assim, é fantasmagórica a situação em que nenhuma pessoa acoberta nenhuma pessoa. O brasileiro tem o péssimo hábito de usar duas negativas para pontuar o mesmo fato, mas um acadêmico da ABL conhece as regras gramaticais e o estrito significado das palavras. O presidente do Senado pode alegar o que bem quiser, mas o seu subconsciente, livre do fardão, já deu mostras do que vem pela frente.