Sobre a consciência

    (*) Roberto Romano da Silva

    Como informei, uma entrevista dada por mim ao jornal O Globo (sobre o Blog da Petrobras) gerou comentários que tentaram me desqualificar como acadêmico e ser humano. O crítico, seguindo o modelo fascista, indicou meus títulos entre aspas. E afirmou rir às escâncaras com a recomendação de que os jornalistas deveriam ouvir os administradores da empresa. Se estes repetissem a técnica intimidatória (ao expor as reportagens, antes da sua publicação) importava obedecer à própria consciência e redigir algo fiel aos fatos (objetividade absoluta só na essência divina, os redatores da Petrobras estão longe de atingir o ser divino).

    A palavra “consciência” causou hilaridade no crítico. E nele gerou um sofisma digno das práticas demagógicas, algo que envergonha intelectuais rigorosos. “Mengele também tinha consciência”. Se alguém usa de modo errado um dom (natural ou divi no) cuja função é respeitar os valores éticos, não implica (é a lógica honesta) em desqualificar o uso correto. Aquele dom leva o ente racional a se colocar um passo adiante das feras. Se Mengele moveu seu intelecto e vontade para destruir os fracos, é ainda mais vital empregar a consciência para impedir que os atuais governantes dela façam um instrumento de pavor, contra os oposicionistas.

    O crítico ignora o que gera o seu riso. O termo para nomear a consciência é “syneidesis”, auto-reflexão sem aspectos morais, tanto nos textos platônicos quanto nos estoicos. A palavra, no Testamento Novo, aparece trinta vezes. Jesus prefere a forma judaica ,“coração”, fonte de remorso e luz, de onde saem pensamentos pervertidos, assassinatos, roubos, falsos testemunhos, difamações. (Mateus, XV, 10, 17-20).

    Mesmo que o cristão, diz Paulo, tenha certeza de seguir normas justas, ele não tem o direito de usar, contra os infiéis, a fo rça física ou constrangimento moral. (J. Lecler : Histoire de la Tolérance au siècle de la Réforme, Paris, Aubier/Montaigne, 1952; também Eckstein, H-J. : Der Begriff Syneidesis bei Paulus, Tübingen, J.C. Mohr, 1983).) Todos tem o direito de pensar de acordo com a consciência. Rousseau exclama sem gargalhadas : “Consciência ! Consciência! Instinto divino, imortal et celeste voz ; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, tu realizas a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações”. (Emílio).

    Para I. Kant, um pavoroso espetáculo surge no exame de consciência. “Nenhum homem desejará ter ocasião de o experimentar, nem desejará viver numa tal circunstância. (…) é insuportável ser indigno de viver diante dos próprios olhos” (Kritik der Praktischen Vernunft, Ed. Felix Meiner, 1972, p. 103; comento a doutrina em Corpo e Cristal, Marx Romântico, RJ, Ed. Guanabara, 1985).

    A consciência pode ser usada como instrumento de engano e auto-engano, pode ser pervertida. E aí, não existe motivo de risos. Franz Stangl, nazista igual a Mengele, ficou famoso ao proclamar : “Minha consciência é clara. Eu apenas cumpri o meu dever”. Mesma desculpa de C. Schmitt em Nuremberg : Hitler era governante legalmente estabelecido…Tais perversões da consciência, a fazem rígida como o granito.

    La Boétie (Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562), contrário às guerras religiosas, afirma que “o povo aprende a desobedecer voluntáriamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, o mais doce e agradável veneno do mundo. (…) Nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”.

    La Boétie não condena nem desanda a rir da consciência: percebe o seu perigo quando enjaulada nas crenças rígidas da sua época. Jornalistas e adeptos da Petrobras tem consciência. Ambos devem ouvir a sua voz. Rir de seu aviso é cair na bestialidade fanática das hienas do espírito. Nada mais.