Salve-se quem puder. Cada um por si, Deus por todos. Sai da frente que atrás vem gente. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço cada vez mais apertado em que nos movemos e que nos escancaram os percalços e os perigos de viver na cidade grande.
(*) Marli Gonçalves
Um bolinho de gente tentando entrar e outro bolinho tentando sair. Chegou o Metrô. Um montinho de gente tentando entrar e outro montinho tentando sair. Chegou o elevador. Alguns cutucões, caras feias, faz-de-conta que não estou vendo, uma cotovelada lá, outra aqui. Aplicamos alguns golpes de luta livre.
Vermelho, amarelo, verde. No cruzamento não dá para passar porque aquele cidadão resolveu tentar e ficou parado no meio da coisa toda. O verde foi pro vermelho, e o cara de trás acha que buzinar pode resolver a situação, que a buzina dele é mágica. A vontade é tirar o braço para fora e fazer aquele sinal. Não, esse também. Mas na verdade agora pensei naquele, de “Vem, passa por cima!”. Só com meditação transcendental de grande alcance.
Um atrás do outro. Isso é uma fila, ou deveria ser. Indiana. Mas sem a dancinha e musiqueta chata da novela, porque é indiana de índio, não de Índia. Olha, aquela figura se fazendo de tonto lá na frente! Olha, aquilo não é uma fila dupla? Embolou… Agora olha o empurra-empurra. Mais: já experimentou, principalmente no cinema, ter de perguntar para alguém, logicamente que está lá na ponta da fila, que fila é aquela, se é a que você procura? Não sei você, mas aqui em São Paulo o povo parece que tem preguiça de abrir a boca até para grunhir. Dá vontade de se aboletar atrás dela e ficar lhe chutando o pé, “sem querer”. Ou falando bobagens escatológicas. Mais meditação transcendental. Água de melissa, suco de maracujá, Elixir, floral. Tome dois litros.
Mas o faça antes de sair de casa. Para ir se acalmando…(Principalmente se o cinema que escolheu é em algum shopping, onde nunca tem lugar, que só desocupa depois que você passou, isso depois de enfrentar verdadeiros pescoços-túneis-fantasma-escuros-e-estreitos, de muitos andares, porque os shoppings têm crescido em camadas internas sobrepostas. Quando você chega lá em cima está tonto. Por isso que nunca consegue decorar onde parou – se no piso laranja, abacaxi, cravo-de-defunto, Carmen Miranda. Ou terá sido no piso verde abacate, miosótis ou Errol Flynn?). Quando chegar, depois de tudo, vai querer ir ao banheiro. Deus te ajude! Em alguns lugares é a pior hora de qualquer opção sexual. Será que aquele símbolo é de “mulher”? M ou W? Que porta?
Aí a gente desiste e resolve ir a pé. Parabéns. Nada como um bom exercício: saltar cocô! Mas veja como estão as coisas. Ninguém deixa você passar, mesmo que você esteja se arrastando e carregando um monte de coisas. Sai você da frente! Encontrões inevitáveis. E buracos, muitos buracos nas calçadas, lajotas soltas, bueiros quebrados. Muitos cheiros. Ruins, em geral, do cigarro vagabundo ao perfume vagabundo. E os caras dos carros tentando te pegar. Vai! Atravessa rápido! Olha a moto virando em cima da faixa, cachorro maluco. Atenção àquela dona com o celular pendurado na orelha – ela não te viu! Ôpa! O malabarista com as tochas de fogo ainda não aprendeu a se equilibrar, voou uma brasa! Aperta aquele botão imundo de sinal de pedestre, talvez esteja funcionando! Quando chegar em casa, desinfeta a mão. Aliás, desinfete tudo, porque o ar estava seco e poluído. Passa um algodãozinho na sua pele, que sai pretinho, nojento.
Não há mais regras, nem educação, bom-senso ou sensatez. A Lei da Física que determina que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço não serve mais, a não ser que você seja um ectoplasma ou invisível. Mudam as leis da habilitação e esquecem de ensinar a lei fundamental: NÃO ULTRAPASSE PELA DIREITA! Tarde demais? Bateu no motoqueiro? Catou uma bicicleta? Imagine o som da voz metálica de um robô: Problema, problema, problema!
Viver na cidade grande já foi o sonho. Hoje virou pesadelo. Até porque, seja sincero, pelo menos no seu íntimo: que raio de cidade você está aproveitando? Quantos eventos culturais? Tem passeado? E o dinheiro da gasolina, do manobrista, do estacionamento? Há quanto tempo não vai a um museu? Aliás, já viu quanto está custando um bom livro na megastore? Respire fundo. É o Governo trabalhando por você.
Quanto tempo fica no trânsito? Nele, tenho visto pessoas fazendo as coisas mais loucas, juro, para se distrair: tricô, crochê, palavras cruzadas, twitter, ler o jornal, cursos de línguas, maquiagem completa, limpeza de pele e “de salão” (dedinho em riste), escovando cachorro, batendo um rangão, rezando o terço, trocando de roupa, limpando o dente com fio dental. Falta botarem um forno de microondas, ou um fogãozinho, para fritar um bife. E daqui a pouco vai ter gente com tara ou com tempo de só fazer amor na hora do rush, dentro do carro.
Claro, ué! Qual o problema? Os vidros escuros fechados , de você não poder nem saber se tem gente dentro. Viramos naves, uma coisa Jetsons, mas sem aquela graça, uma vez que ainda não voamos. Ninguém me tira da cabeça que o número de acidentes aumentou porque o cara não te enxerga, e nem você enxerga o cara, nem para te ajudar a usar aquelas dicas de direção defensiva.
Mas é tão legal viver na cidade! Tão saudável! Stress? Tensão? Perigo constante? Barulho infernal? Vale-tudo? Relaxa. Pega um cineminha. Mas antes que comece a chover. Porque aí a coisa piora, e pode cair uma árvore em cima de você…
São Paulo, 2009, megalópole conlurbada e conturbada, incrível. Parece Nova York!
Marli Gonçalves é jornalista sem férias há cinco anos. Os médicos sempre diagnosticam tensão, stress e agora até exame de coração já vai ter que fazer. Por que será, hein?