(*)Roberto Romano da Silva
“Contrário ao cristianismo é quem persegue homens de vida honesta e amigos da Justiça, só porque sua opinião é diferente e não se apegam aos mesmos dogmas ou artigos de fé. Pois sabemos que amar a Justiça e a Caridade bastam para ser fiel, e perseguir fiéis é ser contrário ao cristianismo” (Spinoza, “Tratado Teológico-Político”, 14). Spinoza toma como fundamento da ética, em todos os seus escritos, a mais rigorosa obediência à justiça. Como filósofo avisado, ele sabe que a condição essencial do convívio político encontra-se no respeito justo às liberdades de todos e de cada um. Nenhuma desculpa pode ser apresentada pelos que, em nome de condições ditas importantes, como a segurança da Igreja e do Estado, desejam tutelar indivíduos e grupos sociais. Seguindo neste aspecto o mais clássico pensamento grego, ele une ética e justiça num só campo. Não podemos esquecer que a mais bela obra sobre a política, “A República”, tem como título “Sobre a Justiça”. É a partir de tal paradigma que os movimentos revolucionários modernos (na Inglaterra do século 17, nos EUA e na França do século 18) elaboraram Constituições e políticas de Estado tendo em vista defender os despossuídos do poderio econômico, político, militar, religioso.
É bom que recordemos o seguinte: a noção de “paradigma” surge no campo da língua grega unido a deiknumi, cujo sentido é “mostrar”, “indicar”. Quando acrescido da partícula “para”, significa “mostrar, fornecer um modelo”. A raíz deik refere-se ao ato de mostrar mediante a palavra, mostrar o que deve ser seguido. Daí na noção de paradigma ser estratégica a união com a Dike (a lei), a regra. (Cf. Chantraine, P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque, Paris, Klincksieck, 1983, p. 257) . A justiça, vista como paradigma ou modelo, vai além do aspecto legal. Ela envolve a existência coletiva, tendo em vista o bem de todos e de cada um. No diálogo intitulado justamente “As Leis”, Platão proclama que um Estado somente pode ser forte, se nele “as dores e alegrias da comunidade forem as dores e alegrias dos indivíduos, e vice versa”. Num coletivo sem justiça, grassa a tristeza, o ódio, a insegurança, a voracidade universal.
Alegria e justiça, palavras que podem resumir os anseios políticos modernos, sempre contrários às barreiras de ódio e arbítrio. Contra os abusos dos poderosos, Spinoza repete a lição platônica. Com alegria, diz ele na Ética: “a alma segue para uma perfeição maior. A tristeza faz a alma seguir para uma perfeição menor”. E no “Tratado Teológico Político” (cap. 20), o filósofo entoa um hino à liberdade, contra toda censura e repressão estatal. A ordem política, diz ele, não tem como fim a dominação; não é para manter o homem pelo medo e fazer com que ele pertença a um outro homem que o Estado é instituído; pelo contrário, é para liberar o indivíduo do medo, para que ele viva o quanto possível em segurança e conserve, sem danos aos outros, seu direito natural de existir e de agir. Não, repito, o fim do Estado não é o de reduzir os homens ao estatuto das bestas feras ou dos autômatos, mas, pelo contrário, ele é instituído para que sua alma e corpo façam com segurança todas as suas funções, para que eles mesmos usem a razão livre, para que eles não lutem enraivecidos, coléricos ou com astúcias, para que eles suportem uns aos outros sem perversões. O fim do Estado é a liberdade.
As ditaduras que dominaram o Brasil no século 20 quiseram reduzir o povo ao estatuto de besta fera, ou de autômato. Alguns homens foram contra tal projeto, cuja base era o mais triste ódio. Sobral Pinto, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, e uma plêiade de varões dignos trouxeram um pouco de alegria aos brasileiros . Entre eles, Mário Simas, de quem comentarei nos próximos artigos um livro precioso para a vida e a memória democrática: “Gritos de Justiça, Brasil 1963-1979” (SP, FTD Ed). Nada mais ligado à mais sublime filosofia, do que o anseio de justiça presente em tal escrito. Apresentarei o autor e o livro, no instante em que a triste desesperança ameaça as almas de nossa gente.