(*) Roberto Romano da Silva –
No dia 03/01/2005 o Correio Braziliense publicou uma entrevista cujo título é revelador: “A era Lula-Risco Autoritário” (ela pode ser lida no site do Sindicato Nacional dos Professores Universitários, http://www.andes.org.br). Como sempre, minhas respostas atraíram a fúria dos militantes petistas. Cito a primeira pergunta de uma longa série : “Correio Braziliense — Alguns estudiosos, o senhor entre eles, costumam dizer que o governo Lula tem estratégias para dominar o Estado e a opinião pública… Essa avaliação não é exagerada? Se não for, como se dá esse domínio? E com qual objetivo? ”. Resposta: “As tentativas de controlar o Estado e a opinião pública não se localizam em todo o governo, mas em determinados setores formados pelo stalinismo (…). Outros integrantes se formaram na tradição centralista, a exemplo de ex- trotskistas (…). Para os dois setores, são ilógicos o debate, a consulta, o contraditório antes de se tomar um rumo político. A direção é a única encarregada de pensar, agir, voltar atrás, etc. É a antiga estratégia de tudo dirigir do alto, da cúpula. (…) Ninguém muda subitamente uma forma de agir e de pensar nem arranca hábitos como se fossem paletós fora de moda. Essas alas do PT tentam enfeitar o próprio discurso com piruetas à democracia. Mas a forma de sua atividade traz a marca do centralismo. A rigidez no comando não é contraditória com a flexibilidade nas decisões, sobretudo se estas últimas favorecerem a expansão do poder dos líderes.”
O que deve ter relevo na análise ética é a forma da ação assumida e imposta à comunidade política. No caso da presente Comissão da Verdade, a marca do autoritarismo aparece em todo o seu esplendor desastrado e desastroso. O uso de não consultar os interessados, não querer assessoria jurídica adequada e tudo impor de cima para baixo levou parte do ministério à proposta em questão, sem avançar com eficácia nos alvos supostamente perseguidos.
É preciso definir o problema no âmbito em que se ele foi produzido. Quem dá um golpe de Estado assume todas as responsabilidades públicas, todos os compromissos que a ordem estatal deve manter com a cidadania. Mesmo as mais virulentas ditaduras não têm o direito de ab-rogar o direito à vida, prerrogativa de todo ser humano que se coloca sob o poder público. Um Estado que não reconheça tal direito não é Estado, mas quadrilha poderosa que só protege os seus integrantes. De tal direito supremo são deduzidos os demais, como o de Habeas corpus e outras garantias, como a integridade física e psicológica. O Estado, para ser Estado e não ajuntamento criminoso, não pode manter paixões, sobretudo as de ódio e vingança. Assim, nenhum ditador confessa que suas prisões estão abarrotadas de presos submetidos à tortura. No Chile, na Argentina, no Brasil, no Uruguai, a reação governamental, nas mãos de civis e militares (é má fé dizer que as ditaduras foram apenas militares) usou a propaganda para negar o fato das prisões políticas onde se torturava. Temos aí um ponto relevante a receber perquisição. Instituições eclesiásticas, como o organismo de Justiça e Paz, provaram que no Brasil existiram práticas absolutamente opostas ao direito estatal. A documentação, abundante e idônea, foi trazida à colação em tempo certo, ainda sob a ditadura. Ela serviu como acicate para a própria Lei de Anistia com a qual se convencionou dar um fim ao Estado de exceção em nossa terra.
Deve ser sublinhado que a referida lei foi aceita pelos que se opunham, em palavras e atos ou pelas armas, ao regime. Semelhante ponto trouxe boa parte da ambigüidade que gerou a crise atual entre a presidência e os setores militares e da defesa. Deixemos claro, no entanto: com a lei de anistia o Estado, no consórcio civil-militar, admitiu que muitos de seus operadores agiram sob o domínio da exceção e que, portanto, ele não funcionou integralmente como Estado. Ao poder judiciário caberia definir o retorno ao direito, com as punições cabíveis. Mas infelizmente aquele poder não assumiu a tarefa. Voltarei ao tema, dada a sua gravidade institucional.