Os inimigos a ofendem com largueza, mas minha mãe é um exemplo que guardo com cuidado

    (*) Ucho Haddad –

    Gostar é algo que resulta da admiração. Pode parecer difícil compreender que só gostamos de uma pessoa porque a admiramos, mas é assim que funciona o sentimento verdadeiro e duradouro. Do contrário, a obsessão toma conta do cenário. Como a ortodoxia é algo que me assusta, prefiro conviver com essa mecânica do gostar.

    O binômio admirar-gostar nem sempre foi presente em minha vida, mas aprendi ao longo dos anos que é preciso algo mais sólido e resistente para sustentar um sentimento, por menor que ele seja. Romântico confesso, lido com o sentimento intensa e escancaradamente, pois a essência da alma não me permite qualquer camuflagem diante do gostar. No momento em que muitos filhos ensaiam discursos amorosos que serão balbuciados às suas respectivas mães no domingo, até porque alguém decidiu que elas têm apenas um só dia por ano para as devidas e necessárias reverências, continuo gostando da minha a partir da admiração. E creio que jamais conseguirei mudar essa forma de gostar.

    A direção da amizade permitiu-me conviver com algo muito maior e mais importante do que uma “simples”, intensa e inexplicável relação entre mãe e filho. Pude, como acontece até hoje, enxergar qualidades indiscutíveis naquela que me apresentou à vida, ao mesmo tempo em que sou imparcial e justo o suficiente para compreender os seus defeitos. Especialmente porque somos reles mortais, graças a Deus, e perfeição é algo tão chato quanto enfadonho.

    Considerando que a memória ainda continua me dando o privilégio de sua constante presença, não posso esquecer-me do dia em que vi um gigante de 1,68 m, em cujas veias ainda corre o néctar da valentia, postar-se diante da porta para barrar o avanço de agentes da ditadura. Era o DOI-Codi que buscava o meu finado pai. Daquele momento em diante passei a enxergar minha mãe de maneira mais lógica e realista, mas com o carinho que ela sempre mereceu.

    Desde então, a sequência da vida me deu a chance de ver minha mãe protagonizando papéis difíceis e desafiadores. Aqui não vou desfiar as proezas daquela que me mostrou que desistir é uma escolha inadequada, mas a melhor delas foi me ensinar a carregar na alma, como a maior das fortunas, o incondicional exercício da fé. Com base nesses ensinamentos encontrei o foco da minha existência como ser humano e profissional.

    Aparentemente dura e intransigente, a mulher que para mim serve como fonte de inspiração às vezes para e chora. Enxuga as poucas lágrimas com o manto do silêncio recluso e retoma o moto contínuo e frenético da vida. Do alto dos seus 75 anos, ela aposta no futuro, inova, empreende, cria, serve, gosta, briga. Exausta por conta das muitas obrigações que ela própria se impõe, já não faz mais cerimônia quando o sono lhe açoita. Dorme como se estivesse embriagada pela sensação do dever cumprido. Dificilmente pede ajuda, pois aprendeu a sofrer calada e a se virar sozinha. Mãe dedicada, avó exemplar. Vez por outra avança o sinal da lógica, mas é preciso dar o devido desconto a esse comportamento avoengo. Afinal, um dia poderemos ser abduzidos por isso.

    Se pilotos de fogão existem, como afirmam alguns maledicentes galhofeiros, por certo ela larga no primeiro pelotão. Transformou a intimidade com as panelas não apenas em negócio, mas em fonte inesgotável de reconhecimento. Dona de receitas secretas, faz da gastronomia da vida uma inovação contínua. Resiliente por si só, tornou-se especialista em misturar o inusitado com o disponível. Econômica, mas não avarenta, surpreende ao protagonizar o milagre da multiplicação. Coisa de “libanesa” das antigas.

    Sempre atrasada, mesmo quando nada tem para fazer, ela desafia o tempo. Tanto é assim, que relógio no pulso é uma raridade. A máquina do tempo, que repousa no fundo da gaveta, às vezes ressurge para cumprir tabela. Sob os padrões da modernidade ela é multimídia. Exercitou e ainda exercita com dedicação a sua porção de mãe. Atua com competência no papel de avó. Perfeccionista e inovadora na elaboração de cardápios. Precisa e isonômica ao atender seus clientes, sejam eles conhecidos ilustres ou ilustres desconhecidos.

    A bordo do seu carro corta ruas e avenidas da mais complexa cidade brasileira, sempre rumando aos compromissos que a esperam diariamente. Dona do próprio dinheiro, briga pelos centavos a que faz jus. Dá lições de moral no trânsito, rola no chão com o ladrão que quer lhe tomar a bolsa. Há dias, em uma de nossas muitas e constantes conversas, disse a essa amiga que em um país onde quem tem mais de 40 anos encontra dificuldade na busca por um emprego, ter quase 76 e ser procurada por causa da competência é um deleitoso presente.

    Se cá estou a lhe prestar homenagem – muito mais como amigo número um do que como filho –, a essa mulher devo parte do que conquistei pessoal e profissionalmente. Ela não me ensinou a escrever, mas me mostrou que desistir é um verbo que não existe. Apoiou-me nos mais insólitos momentos da vida. Dividida entre o sofrimento e a firmeza, disse-me certa vez que tudo daria certo no momento em que do outro lado do mundo a morte insistia em me mostrar a face. De igual maneira foi coerente e equilibrada quando alguém decidiu tolher minha liberdade. Disse que a regra do jogo erra essa e que para cada ação sempre existe uma reação de plantão. E que a mim cabia enfrentar o destino, sem ter lançado mão do conformismo.

    Certa vez, abusados lhe telefonaram dizendo que me matariam. Dona de respostas inesperadas e picantes, avisou aos incautos que o melhor era sentar e esperar a vez, pois alguns tresloucados haviam chegado antes. No mesmo instante em que friamente desligou o telefone começou a orar. Durante a CPI dos Correios foi alvo de marginais que, antes de recado encomendado e direcionado a mim, aterrorizaram durante horas a fio uma mulher com mais de setenta anos. Ao retornar à minha cidade, São Paulo, ouvi o inesperado. Disse-me ela que jamais deveria abandonar meus objetivos e ideais. E que a ação de inconsequentes não poderia me deter. Uma nova lição sobre como não desistir.

    Politizada à sua maneira, tornou-se uma crítica do corrosivo status quo que diuturnamente nos cerca. Às vezes torna-se pauteira e sugere matérias. “Você deve escrever sobre isso e bater nessa turma. Assim não dá!”, esbraveja a mulher que no auge da vida perdeu o companheiro de décadas para as truculentas e imundas filigranas da ditadura. No começo da viuvez viu em mim um fantasma que não existia. Com o passar do tempo percebeu que trouxe ao mundo alguém muito parecido com o homem que amou e a quem se dedicou até surgir o inusitado. Um dia, dirigindo pelas ruas da Pauliceia Desvairada, essa “setentona” para o carro, empunha o celular e me chama. “Meu filho, o pessoal da rádio está falando bem de você”, disse-me do outro lado da linha uma mulher emocionada e convicta de que seu esforço não foi em vão. Fiquei feliz por ela.

    Discreta, mas dona de personalidade marcante, essa mulher provavelmente não terá no Dia das Mães qualquer declaração de amor de minha parte, pois a ela dedico admiração incondicional e carinho verdadeiro a cada segundo. Certamente ouvirá algo que provavelmente não mais suporta ouvir. Um intenso e suave muito obrigado, pois é esse o único e verdadeiro presente que lhe posso dar.

    Nada espero do amanhã, mesmo sendo um sonhador, mas se o futuro me convidar a entrar, nele quero estrear com a tenacidade e a coragem da mulher que os meus desafetos falam mal sem conhecer, quando os impropérios deveriam ser dirigidos ao rebento, não àquela que me pariu. Sendo assim, muito obrigado, Zuza, e feliz todo dia!