Contradições, resistências e rock n’roll

    (*) Marli Gonçalves –

    Sou a própria contradição, mas para quem vê e não sabe. Todo mundo tem direito a pelo menos uma contradição nessa vida; jogue pedras e cuspa rãs quem nunca as teve. Claro, elas devem ser moderadas, e, se possível, evolutivas, para melhor, mas não me venham com preconceitos e bobeiras

    Mais uma semana ouvindo que o Bin Laden não morreu, que querem ver o corpinho com as barbas de molho, que o coitadinho, velhinho, estava desarmado, meu saco de paciência estoura. Aliás, ele – o meu saco de paciência – anda meio que mais no limite do que os cestos de lixo espalhados pela cidade, transbordantes, enfeites do descaso urbano pendurados em postes.

    Não sei se os surtos vêm da água que bebem, mas tem gente sofrendo de crises infantis do tipo São Tomé, que só acreditam vendo, ou acometidos de gugudadá de muxoxo porque a sociedade civil pressiona e avança, acima da cabeça dos coronéis e pistoleiros e pistoleiras em cargos públicos, eleitos ou indicados pelos seus pares. A decisão tomada pela Supremo, por unanimidade, reconhecendo juridicamente a união de pessoas do mesmo sexo, nos dá certo alento. Algumas gotas pingam das torneiras da Razão.

    Ninguém vai obrigar ninguém a casar. Até porque inclusive entre os gays há de praxe uma certa alta rotatividade nas relações, que pode até vir a melhorar. Mas se acabar vai perder a graça. Também não precisa ser gay para entender, apoiar, assim como não é exatamente uma questão religiosa.

    Contudo, não é porque sou da Paz que rejeito as regras da guerra. Vivemos em conflito, até com nós mesmos! Padres não viram castrados ao serem ordenados. O desejo chega; não manda recado, nem marca hora. É assim que tudo pode ser, um dia, a nossa realidade, por mais distante que esta pudesse parecer. Não diga dessa água não beberei, com ou sem bolinhas. Se não fui acho que devia ter ido – sempre rola.

    A propósito, o tema é respeitar. Mudar, fazer, acontecer, decidir – ou não. Os dias passam. E a geminiana aqui se encontra em sua plena piração anual, que acontece de qualquer jeito. A sorte é que ganhei de presente de Deus um espírito mutável.

    Depois dos 50, preparem-se as que quiserem ouvir, fica mais, digamos assim, visível a pressão externa por mudanças, a avaliação, uma certa apreensão com os próximos dias, e não é mais só pela espera da menstruação – de quem gostava muito, e que ando até com saudades da rotina, agora inconstante.

    Antes que esqueça, inclusive, explodam-se as convenções. É o que acho. Sou, no bom sentido, moleca; nasci moleca e moleca permanecerei de espírito. Sempre vivi a contradição entre a imagem que os outros vêem e julgam – e o que sou exatamente. Sofri, apanhei, perdi e acabo sendo sempre muito prejudicada por isso, o que me faz sempre evitar fazer juízos “visuais”. Cansei de ser chamada de maluquinha, meio louquinha, figura, exótica (é, usam muito essa palavra para mim), ou qualquer outro termo apenas idiota ou condescendente que na verdade busca desmerecer-me, mesmo que sem esse claro propósito. Só o velado, o odioso velado.

    Escuto. Pisco. Sei. Faço de desentendida para viver. Tento apenas escapar de que não me atrasem ainda mais a vida por isso. Controlar o que posso, mas só posso com o que é declarado, claro. Queria ver é fazerem metade do que faço, da responsabilidade com que encaro as tarefas que me são confiadas, das renúncias que fui e sou obrigada a fazer.

    O mundo é dissimulado demais da conta. Pensam que foi fácil chegar até aqui – com vários arranhões, decerto – mas sendo ainda espontânea, otimista e independente? Sem riquezas e posses, sem olhos claros, e de altura pouco mais de metro e meio? Solteira, sem filhos? Para azar e horror dos que gostam de teses imutáveis, sempre fui estudiosa, sempre fui obediente e boa filha (perguntem por aí, se duvidam), boa irmã, boa amiga, solidária como posso. Trabalho, literalmente, e sem parar, desde os 15 anos de idade, quando pretendi, mas nunca consegui, comprar uma motocicleta, mondo cane. Fui uma das primeiras – ao menos que conheço – a andar de moto, de skate, por aí, e a conviver com garotos sem que isso significasse nada além de amizade. Não havia raça proibida. Nem religião. Nem estado civil, sexo. Tudo isso no meio de uma ditadura. Ou isso ou aquilo. Sempre optei pelos dois, ou três, ou mais quesitos. (…piscadinha marota…)

    Sim, quiseram casar comigo, mas me desvencilhei, segura de que só – eu e minhas contradições – seria feliz, porque também sempre achei no caminho gente querendo é me mudar, me prender, tirar o sorriso de minha boca e o brilho dos meus olhos. Alguns conseguiram. Mas fui buscar de volta a tempo. “Atroz contradição a da cólera; nasce do amor e mata o amor”. (Simone de Beauvoir).

    Aos 8 anos de idade, me joguei na lama por odiar uma roupinha de marinheiro branca e engomada que me obrigaram a usar; a partir daí invento minha própria moda. Quando tem gente vindo, já fui e voltei. Fui e voltei. Voltei e fui, mesmo sem sair do lugar. Nem tão solta como quis, mas sempre com os livres e os livros. Amei e amo muito, inclusive casos que duraram algumas décadas, sem ter o amado, apenas o amante, de todas as cores, credos, carteiras, com cabelo ou não. Apenas algo que me encante.

    Sou rock n’roll, mas também sou jazz, e pretendo manter a resistência.Tudo é possível, e aqui no Brasil ainda mais, o lado bom de nossa gente.

    Somos nós as contradições vivas, e quem é que sabe disso além de nós mesmos?

    São Paulo, astral de 2011, quase virando mais um numerozinho do velocímetro

    (*) Marli Gonçalves é jornalista. Usa minissaia e aproveitará bem, até o último instante, tudo o que puder.

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