(*) Marina Ito, do Consultor Jurídico –
Depois que o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Lei de Imprensa, de 1967, não foi recepcionada pela Constituição de 1988, passou-se a discutir as consequências que tal decisão teria no dia-a-dia dos tribunais pelo país. Na prática, os TJs já vinham adotando tal posicionamento. Mas algumas questões ficaram no ar. E são a doutrina e jurisprudência que vão pavimentar esses entendimentos com base no que foi decidido na mais alta Corte.
O desembargador e professor Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (à direita na foto) lançou o livro “O STF e o Direito de Imprensa: Análise e Consequências do julgamento da ADPF 130/2008”, obra conjunta com a advogada Mônica Cristina Galvão. Com base no acórdão e nos votos de cada ministro que participou do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, Grandinetti, especialista em liberdade de imprensa, aponta as principais consequências e faz uma análise de como as questões envolvendo os veículos de comunicação podem ser resolvidas.
Para ele, não é necessária uma lei específica para tratar de processos que envolvam a imprensa. A exceção é em relação ao direito de resposta, que, embora possa ser concedido pelo Judiciário sem uma lei própria, deveria ser regulamentado. Em seus votos, o ministro Celso de Mello, do STF, tem entendido que a Constituição, ao garantir esse direito, tem aplicabilidade imediata.
Se for para fazer uma Lei de Imprensa, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não tem dúvida: que vá além e preveja o direito de participação do leitor ou telespectador. “Se uma emissora de TV quiser divulgar uma má informação que prejudique o leitor, este não tem instrumento, não há nada que ele possa fazer.”
Há necessidade de lei especial para tratar de dano moral quando o processo envolve imprensa?
Após a decisão do Supremo de considerar que a antiga Lei de imprensa não foi recepcionada pela Constituição, houve uma perplexidade de como os casos envolvendo a imprensa seriam resolvidos dali para frente. Acho que não há necessidade de uma nova lei para regular as questões relacionadas a indenização ou, eventualmente, a condutas criminosas por parte do jornalismo. Tanto o Direito Civil quanto o Penal dão conta dessas relações. A única parcela da Lei de Imprensa que precisa de um novo tratamento é o direito de resposta, já que a única previsão que havia sobre isso estava na Lei de Imprensa. Nesse aspecto, há um vácuo legislativo.
Não haver lei sobre o direito de resposta é um vácuo insuperável?
Não. É possível superá-lo com a legislação existente, pois o Código de Defesa do Consumidor prevê um instituto da contrapropaganda, similar ao direito de resposta. Quando uma empresa anuncia algo que viola a proteção da criança, por exemplo, é possível obrigar o anunciante a fazer a contrapropaganda e corrigir o erro. Pode-se invocar o Código de Processo Civil, em uma ação de obrigação de fazer consistente em publicar a resposta, além de usar a tutela antecipada para obrigar a resposta antes de sair a sentença. Tudo isso é possível fazer. Mas faltaria um específico para a Lei de Imprensa. Acho que basta criar uma lei sobre o direito de resposta. Caso se queira tratar da imprensa de uma maneira mais atual, seria possível elaborar uma Lei de Imprensa.
E qual seria o objetivo dessa nova lei?
Ela poderia prever o direito de participação do espectador ou do leitor, algo que, hoje, não há. Tradicionalmente, a liberdade de imprensa sempre se voltou para o dono do jornal. É uma liberdade de matriz liberal. Ao refletir sobre essa questão nos tempos atuais, pautada nos direitos e liberdades sociais, vamos perceber que a liberdade de imprensa ficou parada no século XVIII. Se uma emissora de TV quiser divulgar uma má informação que prejudique o leitor, este não tem instrumento, não há nada que ele possa fazer.
O senhor poderia dar um exemplo desse prejuízo do leitor?
Há um caso concreto, que tem uma peculiaridade especial por envolver matéria eleitoral: o debate entre Lula e Collor [candidatos a presidente nas eleições de 1989]. A Globo editou o último debate de forma a apresentar os melhores momentos do Collor e os piores do Lula. O eleitorado não podia ter feito absolutamente nada contra isso. A imprensa tem um direito praticamente ilimitado; faz e edita do jeito que quiser. O prejuízo não é do Lula. O prejuízo é do eleitor, que teve uma imagem deturpada. O Globo esteve recuperando o que aconteceu no Riocentro [ataque a bomba em 1981, no estacionamento do Riocentro, onde ocorria um show em comemoração ao dia do Trabalho]. Mas, no dia do atentado, a TV Globo filmou a cena do Puma [carro ocupado por militares tidos como os autores do atentado]. Na filmagem, apareciam as tais bombas no banco traseiro do carro. Depois disso, nunca mais ninguém divulgou as imagens. O prejuízo é do público, que tem uma informação, nesse caso, incompleta. Acho que uma futura Lei de Imprensa tem de prever o direito do público de ser bem informado. Sustento que não só a pessoa que é ofendida em uma publicação, mas qualquer cidadão tem o direito de corrigir a informação.
O espaço destinado às cartas do leitor no jornal não serviria a isso?
Os jornais de grande circulação têm que ampliar esse espaço e permitir que o leitor corrija uma informação do próprio jornal. Hoje, o jornal faz uma triagem e só publica o que interessa. Eu já tentei fazer uma crítica a um jornal e não consegui. Toda vez que critico, eles não publicam. Na Inglaterra, há o Press Council, um comitê que reúne a sociedade civil e todos os órgãos de impressa. Esse comitê pode obrigar um jornal a publicar a carta do leitor ou qualquer outra informação. Acho que é isso que falta aqui. Se quiserem fazer uma Lei de Imprensa, tem que ser atual, do século XXI, com direitos assegurados à população. Se a imprensa reivindica tanta proteção, tem que conceder o pluralismo, que são outras vozes além da do dono do jornal. É preciso prever uma autorregulamentação, como o Conar [Conselho de Autorregulamentação Publicitária]. Acho que funcionaria bem. O público tem o direito de ser bem informado.
Mas no caso, por exemplo, de uma informação incorreta ou deturpada, o próprio leitor não poderia fazer uma seleção? O veículo já não perderia a credibilidade diante do leitor ou do telespectador, que, portanto, deixaria de comprar o jornal ou assistir à programação da emissora?
Não. Esse argumento é importante e procedente na sociedade americana, por exemplo. Lá existem várias emissoras de TV com o mesmo patamar de influência e audiência e inúmeros jornais com o mesmo peso. No Brasil, não. As maiores empresas de comunicação no país são tituladas por nove famílias: São nove famílias que detêm algo como 90% da audiência do Brasil todo. Não é possível que um número tão limitado detenha todo o monopólio de informação. É preciso que se rompa esse monopólio, permitindo que o leitor mais bem informado possa informar os outros.
O senhor afirmou que as questões envolvendo imprensa poderiam se socorrer do Código de Defesa do Consumidor quanto ao direito de resposta. Seria possível pensar na possibilidade do Código ser usado por um leitor contra um veículo de comunicação por conta das informações que são divulgadas?
Tem um aspecto sério nessa questão. O Código do Consumidor está baseado na responsabilidade presumida e objetiva. Isso quer dizer que quem tem que provar a exclusão da responsabilidade é a empresa. Se transportar esse aspecto para a imprensa, será a mesma coisa. Nesses casos, eu tenho sustentado uma atenuação, pois é difícil para o órgão de imprensa fazer uma contraprova ou guardar os arquivos durante vasto período. O prazo prescricional é longo. Obrigar uma emissora de TV a manter a entrevista ou reportagem durante cinco anos é demais. No caso, eu proponho a mitigação, ou seja, que a responsabilidade não seja objetiva, nesse primeiro momento, pelo menos para que se estude melhor a situação. Já sustentei a responsabilidade objetiva, mas estou reconsiderando um pouco esse ponto.
Por conta do espaço?
Exatamente porque esclareceram essa questão. Quando houver a digitalização do material, isso vai ficar mais fácil. Quem fabrica uma televisão, tem o seu manual de fabricação. Ele tem como se defender. Afinal, todas as televisões são iguais. Mas, no âmbito jornalístico, é complicado obrigar a empresa a se defender sem que o outro comprove a culpa da empresa jornalística.
O senhor falou em século XXI. Hoje, com a internet, as pessoas trocam informações de modo muito mais rápido e com uma abrangência espacial maior. Faz sentido dar o mesmo tratamento ao que é publicado no twitter, por exemplo, ao que é divulgado nos jornais ou na TV?
Vou te confessar que não sei como é o twitter. Imagino que seja como torpedo de telefone ou como e-mail. Se bem que o e-mail e o torpedo são relações interpessoais. O twitter é genérico, não é?
O Twitter é um microblog, espécie de rede social, mas em que a pessoa pode escolher se envia a mensagem para que qualquer outra possa ler na internet ou se apenas direciona a uma delas.
Tenho que pensar melhor sobre isso, até porque não conheço a ferramenta. Mas imagino que não possa ter o mesmo tratamento, pois não se trata de uma atividade empresarial, como uma grande emissora de TV, rádio ou jornal. É uma maneira de expressão. A pessoa expressa o que quer. Tem que haver uma diferença de tratamento entre a informação e a expressão. A informação precisa prestar algum tributo à veracidade. Se a pessoa quer informar algo, tem que, ao menos, convencer as pessoas que a informação é verdadeira. Para isso, servem documentação hábil, gravação, filmagem. O informador tem de estar amparado para, no futuro, provar que a informação é veraz. No twitter, é uma demonstração de expressão. Para isso, não é preciso demonstrar veracidade do que se escreve ali. O controle é menor. É como qualquer outro meio em que se divulga a liberdade de expressão, como uma biografia, obra de ficção, atividade de teatro, filme. É tudo liberdade de expressão; há uma licença maior.
Uma Corte nos Estados Unidos entendeu que os blogueiros não estão protegidos pelo sigilo da fonte. Hoje, há inúmeros blogs. Alguns de colunistas que estão associados a algum portal ou jornal. Mas há outros tantos “anônimos”, que, por vezes, denunciam situações que não vão parar na grande imprensa ou que abordam assuntos regionais. Nestes casos, pode-se equiparar o blogueiro com o jornalista?
Nos EUA o sigilo da fonte é muito relativo e sequer está previsto na Constituição. Há alguns anos uma jornalista de um grande jornal chegou a ser presa por não revelar a fonte. Por isso que não me surpreende não estenderem isso aos blogs.
E no Brasil?
No Brasil, o assunto não é pacífico. Eu penso que os blogs de empresas jornalísticas devem merecer o mesmo tratamento de jornais e emissoras. Mas nem um nem outros estão isentos de responsabilidade pelo que publicarem, mesmo não sendo obrigados a revelar a fonte. Os blogs de pessoas particulares não devem merecer o mesmo tratamento quanto ao sigilo da fonte, porque essa proteção é dada à atividade de imprensa, como pessoa jurídica, devidamente registrada no órgão competente. Isso porque a pessoa jurídica tem responsabilidade civil pelo que publica. Daí porque penso que o blogueiro particular ou avulso não pode reivindicar o mesmo tratamento. Ele daria menos garantias à pessoa eventualmente atingida pela notícia. Mas isso é o que eu penso agora, já que o assunto é relativamente novo.
No caso do sigilo da fonte, a imprensa não pode entregar documentos, que poderiam revelar a fonte de quem passou a informação.
O sigilo da fonte é constitucional; a empresa não pode revelar. Entretanto, não está exonerada de demonstrar a existência dos documentos, ainda que se use algum método de eliminação da assinatura, dos nomes das pessoas. Ou que se entregue tudo à Justiça e o próprio Judiciário elimine a fonte, além de decretar sigilo no processo. A empresa não está excluída disso. Quando a empresa jornalística recebe uma informação com amparo do sigilo da fonte, ela arca com a responsabilidade. No caso Watergate [esquema de espionagem política nos EUA revelado pelo jornal Washington Post e que derrubou o então presidente Richard Nixon], a imprensa recebeu todos os informes. Se o jornal fosse processado, teria que fornecer os documentos, mas não a identidade de quem forneceu. Sigilo da fonte é para quem informa, não é para o jornalista.
A fonte é sempre protegida.
A fonte tem que estar sempre protegida. Do contrário, o jornal pode até incorrer em crime. A Polícia não pode invadir a empresa jornalística para buscar documentos; tem que requerer busca e apreensão. O juiz tem que ser comunicado que há documentos protegidos pelo sigilo e tomar cautela para eliminar o nome da pessoa que passou as informações.
Com isso entramos em outra polêmica: a divulgação de documentos sigilosos. Na sua opinião, a imprensa é responsável quando publica algo que está sob sigilo?
Pois é, isso virou bagunça. Já saiu na capa da Vejaa declaração de renda de um político. A lei que trata de sigilo fiscal estabelece responsabilidade criminal daquele que recebe e divulga os dados. Só que isso não é cumprido. Ninguém se insurge contra essa divulgação. O próprio Ministério Público não procura proteger esses dados; é o primeiro a divulgar. Hoje, o juiz busca o documento, que vai para o processo, e, chegando lá, cada um distribui para quem quiser. Não é assim… A quebra de sigilo só é justificada para efeito de apreender o documento para servir de prova no processo. Tudo, além disso, continua coberto pelo sigilo. A conversa é interceptada para servir ao processo, e só o trecho que é importante para o caso. Tudo o mais está protegido pelo sigilo. Não é isso que se vê.
Outro tema envolvendo esse assunto tem a ver com uma matéria que o senhor já decidiu ao conceder Habeas Corpus a pessoas que pretendiam participar da marcha da maconha. A justificativa era de que isso também estava relacionado à liberdade de expressão.
Exatamente. Não há como impedir a liberdade de expressão. Tem como sancionar se, durante o exercício dessa liberdade, a pessoa ofender alguém. Mas ninguém pode ser impedido de, por exemplo, xingar outra pessoa de sabe-se lá o quê. A pessoa tem o direito de xingar, e com isso poderá ser condenada criminal e civilmente. Mas não se pode cortar a língua da pessoa. As pessoas têm o direito de se manifestar sobre as condutas públicas. No caso, trata-se de uma política pública sobre a criminalização ou não. O cidadão tem o direito de se manifestar. E quem for contra também tem o direito de fazer o mesmo. Alguém que realize uma marcha no sentido contrário. É assim que a democracia funciona.