Ensaio sobre a imprecisão

    Marli Gonçalves –

    Aquela diferença do segundo, do raspão, do milímetro, do milionésimo, e a pouca atenção que damos à busca da perfeição. Eu disse busca, tentativa, que deve ser eterna porque também é imprecisa

    Farei você rodar um pouco sua cabeça, chacoalhar, bater os cabelos, com a conversa de hoje. Pensando na imprecisão. Imprecisão que grassa, atravessa e ultrapassa tudo, fazendo com que a gente se descuide. E cada vez se dê menos valor ao ofício, seja qual for. Se pode tudo, se pode ser qualquer coisa, para que fazer direito? Na cultura do momento, do qualquer coisa tudo bem porque daqui a pouco vai aparecer outra coisa, e que a gente-vai-mesmo-esquecer está nos levando a erros horrorosos. Perigosos. Sempre haverá alguns (erros) inesquecíveis.

    Desde sempre observo e penso sobre esse átimo, breve, instante, estalar, que decide tudo. Ou muito, para ser mais imprecisa. Essa semana uma garota chinesa andava pela calçada, tralalalá, e um buraco abriu sob seus pés, sugando-a. Como ela era magrinha, vi que ali foi a combinação de tempo e ocasião. Ela não estava pouco atrás, nem um passo à frente.

    Um passo em falso, um tropeção, um esbarrão, um piscar de olhos e todas as definições de tempos mínimos e fugazes podem mudar uma vida, duas vidas. Várias vidas. O “esbarrão do amor”- conheci algumas histórias – pode até gerar essas vidas. Aquele olhar perdido, a pressa, um pequeno atraso. O raio que cai do céu. O cruzamento.

    Agora, nem o que necessariamente deveria ser exato, preciso, instrumento, ferramenta, o é! Soube, foi notícia outro dia, que um GPS com aquela sua vozinha infernal de maquininha mandou um cara entrar e ele entrou – na contramão. Já era. Outro dia eu mesma achei que tinha visto o sinal fechado para atravessar a rua a pé. Mas olhei na direção errada e foi a primeira vez que não xinguei uma buzina precisa e forte que graças a Deus não falhou. Não dá para se distrair nas grandes cidades. Não dá para ser impreciso. É tenso o fato.

    Na verdade qualquer escorregão a precisão está por perto pode ser terrível. Virtual: mandar um email, digamos, para a pessoa errada, com conteúdo certo, mas que exatamente ela não poderia conhecer nunquinha; não desligar o celular direito e ouvir certas conversas. São cliques. Instantâneos. Real: um zero a mais no cheque. Não tomar a pílula todos os dias do mês. Riscar o fósforo. Pensar que o degrau da escada estava ali. Falar demais, já que as palavras proferidas não voltam para dentro da boca e, no caso, ao se tocar do que falou, só rezando para a outra pessoa ser surda. Ou desatenta. Sossegue: achar desatenção anda fácil.

    Tem que andar olhando para baixo, se há buraco. Para o lado, se não tem um ciclista passando e raspando. Para cima, para o vaso, o piano, ou outra coisa melhor não acertar a cabeça.

    Imprecisão é foco. Ou melhor, falta de, já que é uma indefinição, o espaço para uma ambiguidade, uma inexatidão. Um erro. Falta de rigor. Um remédio que você não tome pode não fazer mal, mas um remédio que tome (ou dê) errado pode matar. Há profissões onde, pela lógica, se deve correr da imprecisão. Médicos. Engenheiros. Salva-vidas. Pilotos e paraquedistas. Fora as imprecisões que só serão descobertas tempos depois, e em momentos muito precisamente fatais.

    Estou aqui pensando sobre esse assunto, mas não pense que não sofro e muito, justamente por imaginar um mundo leve, não tão rigoroso. E por ser eu mesma, como boa geminiana, meio que desigual em muitas coisas. Fazer maquiagem, por exemplo, uma das horas que a minha imprecisão bate mais forte. Sempre um olho fica diferente do outro; passar delineador, aquele risquinho preto, aventura radical. Sou ruim de coreografia, sou ruim de decorar textos, não me meto a besta com desenhos a mão livre. Imprecisões não são admitidas nestas coisas. Chego ao final do dia arrasada de cansada por viver sempre na tensão da atenção. Em várias coisas, pior: sofro por mim e pelos outros.

    Jornalistas, por sua vez, andam muito imprecisos. Às vezes levam reputações para o lixo, por conta disso. Só que a língua, a linguagem, as palavras, em muitas horas necessitam e reclamam exatidão; e o contrário pode levar a duras penas. Carlos Drummond de Andrade já pensava nisso quando escreveu “A eterna imprecisão de linguagem”. Definitivo, sempre.

    Veja um trechinho:

    – É um amor.

    – Perfeito? perfeito da china? perfeito do mato? perfeito azul? perfeito bravo? próprio? materno? Filial? incestuoso? livre? platônico? socrático? de vaqueiro? de carnaval? de cigano? de perdição? de hortelão? de negro? de deus? do próximo? sem olho? à patria? bruxo? que não ousa dizer seu nome?

    O poema do mestre Drummond vai indo até que termina assim:

    – Vá com Deus.

    – Qual?

    Entendeu?

    São Paulo, precisamente aqui neste lugar impreciso, 2012

    (*) Marli Gonçalves é jornalista – Mais dúvidas do que respostas. Escolheu chamar isso de ensaio justamente porque é um gênero literário de catalogação imprecisa. Essai, em francês, quer dizer ensaio, experiência, prova, tentativa.

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