Eu vejo gente diferente

    (*) Marli Gonçalves –

    Imitando um trecho de filme, mas mudando o diálogo, tornando-o, digamos, menos dramático. Quero te contar um segredo … Eu vejo gente diferente. O tempo inteiro. E acho ótimo.

    Lembram do olhar do menino, apavorado, de O Sexto Sentido, quando confessa ao pai “Bruce Willis” o que o assustava tanto, e que acabou virando uma frase de efeito, e que a gente usa quando quer dar medo ou brincar com alguém? Com os olhos marejados, assustado, o menino confessava ao pai: I see dead people (Eu vejo gente morta). Pois outro dia me vi pensando o quanto “eu vejo gente diferente”, mas isso não me assusta. Ao contrário, só me alegra, e faz pensar que sou uma moça (!) de sorte, muita sorte, por ter sido criada e viver em meio às diversidades. Todas.

    Há quem goste de chamar ou definir – até de forma preconceituosa – que o que eu estou querendo dizer é conhecido como “fauna”. Dou de ombros. Sempre achei que o mundo só poderia ser construído e andar para a frente com gente diferente. Rimou. Andar para a frente com gente diferente. Fauna. Flora. Mas com personalidade.

    Talvez até venha daí meu horror a profissões uniformizadas, onde só detalhes mínimos podem diferenciar as pessoas, como os militares, por exemplo, e que acabam ainda por andar em grupos. Talvez venha daí também o meu bem pouco apreço por shoppings centers, onde parece que todo mundo é igual, por tribos. Descreveria algo assim: mulheres com cabelos lisos esticados, esticadíssimos, com escovas, alisamentos, ferro de passar, os quais elas sacodem e jogam para lá e para cá, em várias cores, nervosamente, nos corredores, onde batem seus pés com scarpins, longe de pingos de chuva que destruiriam imediatamente suas poses. Aqui e ali se autorizam usar alguma cor, mas que esteja aceita pela moda oficial, agora ditada por personalidades instantâneas fotografadas em revistas semanais de – como definir? – banalidades gerais e irrestritas. Nos mesmos corredores onde grupos de jovens, meninos e meninas, se amontoam teclando em celulares, com suas roupinhas iguais, jeans, também aceitas nas classes de suas escolas. As meninas, ainda arremedos de mulher, olham desafiadoras, críticas, pretensiosas, e cochicham entre si, entre risinhos de escárnio, tampando a boca para falar. Como se precisasse. Os meninos, que ainda nem sabem onde por as mãos, fazem cara de machinhos.

    Agradeço muito ter sido criada bem no meio da efervescência, mesmo nem sempre participando dela, até por falta de condições financeiras. Mas como para ver é só estar por perto, já vi de um tudo desde pequena, criada no centro de São Paulo, na velha Rua Augusta que hoje me alegra muito conferir que voltou a ser ocupada novamente por todos os tipos. Alguns escalafobéticos e escalafobéticas. Estrambóticos. Feios, bonitos, lisos e alvos ou riscados com tatuagens, gordos, magros, branquinhos, negros orgulhosos, orientais loiros, todos os sexos, mas todos mesmo, todos os credos.

    Desde pequena sei o significado de boca do lixo, de boca do luxo. Do que é tradicional, chique, quatrocentão, e do que é novidadeiro e futurista. Ia para a porta do Medieval, boate que ficava ali perto da esquina da Augusta com Avenida Paulista, para ver, em dias de festa, o tapete vermelho, os holofotes que iluminavam aquelas divas travestis que chegavam como quem ia para a cerimônia do Oscar, estrelas de cinema saídas das telas, e que brilhavam com seus paetês, lantejoulas e toda sorte de enfeites e jóias. Lembro de ter visto uma chegar no dorso de um elefante, alugado para “causar”, como se diz hoje . Era mais que isso. Elas “fechavam”, usando mais uma expressão da época.

    Digo tudo isso porque essa semana cheguei à conclusão de que se há algo que gosto nesta cidade da qual cada vez saio menos (e não porque não queira) é de passear para ver tudo. Mas nas ruas, onde está a voz rouca citada em discursos de quem pouco a ouve de verdade. Depois de um dia duro e cansativo, grudada na frente de um computador, no escritório, os muitos minutos perdidos no trânsito podem se tornar fontes de conhecimento e percepção, apenas observando.

    Lojas abrindo. Lojas fechando, inclusive tradicionais (infelizmente esse fato vem sendo muito mais frequente, o que me mostra a real situação financeira do país). E pessoas de todos os tipos, para lá e para cá. Com sacolinhas nas mãos, praticamente todos. As de plastiquinho, de pequenas compras, mais comuns. Cada vez mais difícil é ver aquela típica de cena de filme. Como em “Uma linda mulher”, onde ela carregava um monte, lindas, de várias lojas de marca.

    Vejo porque grassam Ongs de cuidados e adoção de animaizinhos mais,digamos, sem raça definida, sem pedigree. É moda por aqui ter um vira-lata. Por onde ando, muitos tem mais que um, o chique e o viralata, mas que de tantos cuidados, aparecem nas ruas lindos e fagueiros, com os pelos brilhantes e coleiras ornamentadas, desfilando sua certa deselegância discreta, como diria o Caetano, pernas curtas em corpos grandes, rabos peludos em corpos pequenos, focinhos indefinidos que misturam genes de alhos e de bugalhos.

    Nas calçadas, correndo da água espirrada dos meio-fios, tentando atravessar fora da faixa, encontrando outras pessoas, a ocupação das ruas é o que faz uma cidade, daqui e de todo o mundo. O que nos dá segurança e mostra que pertencemos todos a uma comunidade, favela, bairro, região. Vemos que há pessoas caídas no chão, por bebedeira ou cansaço. Há pirotecnia nos faróis onde jovens, muitos latino-americanos, descolam seus trocados. Bebês rosados em carrinhos, ou crianças puxadas e quase arrastadas pelas mãos por mães que não têm com quem deixá-las. Vemos mesmo de tudo.

    O problema é justamente esse. Logo quando a gente começa a se acostumar e divulgar como as ruas podem ser boas, como passeios ao ar livre podem ser mais interessantes, como é gostoso “bater pernas” por aí, ver gente diferente, num minuto vem alguém fazer aquela perguntinha muito chata e hoje, pelo menos por aqui, irrespondível: – “E a violência?”

    É. Eu vejo gente diferente. O problema é que também andamos vendo gente morta. Por acaso, porque estavam na hora errada numa rua errada.

    São Paulo, espírito de Natal detectado, 2012

    (*) Marli Gonçalves é jornalista – Influenciável por imagens. Outro dia, ao ver a foto de um ultrassom que provava que bebês bocejam na barriga das mães, começou a bocejar também

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