Ucho Haddad –
É difícil cobrar lógica, calma e coerência em momento de dor, mas a alguém cabe esse papel. A tarefa deveria ser da imprensa, que, ao revés, tira proveito da tragédia que acinzentou o céu da cidade gaúcha de Santa Maria, colocou uma página indesejada em sua história, enfumaçou o coração de cada brasileiro neste fatídico domingo, 27 de janeiro.
Diante da Justiça, culpados pela tragédia existem e terão de se submeter à dureza da lei, se é que assim pode ser classificado o conjunto legal brasileiro. O que não deve fazer um jornalista é condenar por antecipação, incitar o ódio da população santa-mariense, incentivar o exercício arbitrário da razão, ressuscitar a Lei de Talião – a do olho por olho, dente por dente. Cabe ao profissional de comunicação exigir que a Justiça atue de forma exemplar e dentro dos parâmetros estabelecidos pela legislação, além de vigiá-la.
Como se a sociedade, dita evoluída, pudesse ser transformada em um universo canibal, em uma espécie de personificação múltipla do Coliseu, surgiram na mídia impropérios de todos os naipes. Jornalista experiente, José Luiz Datena, chamado às pressas à TV Bandeirantes para ancorar o noticiário da tragédia, sugeriu em dado momento que o dono da boate, onde ocorreu um incêndio e mais de duzentos jovens morreram, deveria ser linchado em praça pública. Datena é um profissional competente e jornalismo ao vivo é privilégio de poucos, mas esse tom policialesco que muitas emissoras dão aos fatos do cotidiano é abusivo.
É verdade que o ser humano usa o calvário alheio como muleta para avançar na trilha da vida com a alma desanuviada, mas o sensacionalismo barato que toma conta do noticiário chega a ser nauseante. Linchar o dono da boate não trará os mortos no incêndio de volta. Apenas produzirá mais um cadáver, não sem antes esgarçar a já carcomida malha que envolve a sociedade e a existência de cada um dos seus integrantes. O estado é constituído por seus Poderes, os quais devem atuar diuturnamente buscando a excelência, seja diante de um sorriso, seja diante de uma lágrima.
Emissoras e sites noticiosos têm espocado, aqui e ali, notícias exclusivas, furos de reportagem, depoimentos inusitados. Esse comportamento jornalístico em nada ajuda os envolvidos direta e indiretamente na tragédia. Os que morreram devem ser respeitados, para que suas respectivas almas tenham o destino e o descanso merecidos. As famílias não podem ser vilipendiadas em momento de dor, sofrendo ainda mais com informações exacerbadas ou nutrindo gotas de esperança que já evaporaram. As autoridades não podem ter o norte do trabalho desviado por uma insana disputa que os veículos de comunicação travam por míseros pontos de audiência, os quais fazem tilintar a caixa registradora de cada uma dessas empresas, que longe das tragédias insistem em destilar o bordão da moralidade. E nesse sórdido raciocínio matemático-financeiro, que só conhece a adição e a multiplicação, o besteirol é a alavanca da cornucópia.
Muitos me classificam como intransigente, mas estou acostumado a ver além, a fazer o cérebro a funcionar na amplidão do fato, no posfácio de cada acontecimento, mesmo de forma antecipada. O que não significa que sempre acerto. Erro por que sou humano, erro porque busco acertar. Mas o contínuo exercício do pensamento nessa direção faz com que as chances de erro diminuam. A vida me ensinou a ser assim. Como as lições foram duras e nada fáceis, cada vez mais prefiro a lógica à afobação. Ademais, esse comportamento pensante faz parte do ofício que escolhi há décadas.
Deixo de lado o escorregão de José Luiz Datena, que foi empurrado pelo calor da notícia e pela complexidade do jornalismo ao vivo, para analisar de forma mais ampla o papel da imprensa. E concedo-me o direito de voltar no tempo. A festa na boate de Santa Maria, que acabou em tragédia, foi batizada pelos organizadores de “Agromerado”, grafia inusitada que dá a entender que seria uma aglomeração de estudantes de Agronomia, principalmente. A imprensa local por certo divulgou o evento a pedido de muitos e por interesses do mais diversos. Pois bem, o pecado maior de um jornalista é a preguiça de pensar.
Como sempre afirmo, escrevo e não canso de repetir, estar jornalista é ser investigativo por natureza. Pouco resolve fazer uma matéria sobre determinado assunto tendo uma visão míope do tema. Pensar não é crime, não é pecado, não dói e não paga imposto. E qualquer jornalista tem a obrigação de pensar, cada vez mais.
Se a festa que terminou em tragédia, em Santa Maria, foi noticiada com a devida antecedência, o que não deve ser descartado, o jornalista que fez a matéria, antes de escrever a primeira palavra, deveria questionar a si mesmo sobre os porquês do nome do evento. Afinal, até o mais ignaro sabe que, via de regra, aglomerações terminam em confusão e geram problemas. Sendo da Agronomia, da Engenharia, da Medicina, do que for. Mas não, a “Agromeração” foi noticiada como se fosse mais uma edição do famoso Baile do Havaí.
Fazer o alerta que ora sugiro possivelmente não evitaria a tragédia, que ganhou proporções porque a ganância de uma minoria trancou a porta de saída, mas teria feito alguns dos que participaram da festa a pensar antes de embarcar na balada da morte.
Ora, quando se organiza uma “festa do cabide”, por exemplo, ingênuo é o sujeito que compra um ingresso pensando que participará de retiro espiritual em monastério budista. E se a imprensa de determinado local divulga a “festa do cabide”, o jornalista tem o dever moral de, mesmo parecendo redundância desnecessária, informar que no recinto fica-se nu logo na entrada e que a sacanagem acontece à vontade até a saída. Pode parecer bobagem, mas é obrigação profissional. E aquele que não age assim é melhor abandonar o ofício de escriba, sob pena de ser um indutor de equívocos.
Essa preguiça que toma conta dos jornalistas, que cada vez menos se preocupam com o mais simples significado de uma palavra, causa-me espanto e faz com que a sociedade, também preguiçosa no pensar, torne-se desinformada. Os tempos modernos trouxeram a escassez de tempo no cotidiano de cada um, fazendo com que as informações sejam cada vez mais curtas, compactas e céleres. A velocidade da informação está tornando o conhecimento impressionantemente vasto, mas extremamente raso. O que é deveras preocupante.
Tomo como exemplo o acidente ocorrido na obra de uma das estações do Metrô da capital paulista, que abriu uma enorme cratera e fez vítimas de toda ordem. Instantes depois do acidente, a imprensa correu para o local e, a exemplo do que ocorre no interior gaúcho neste domingo e se repetirá incansavelmente nos próximos dias, disparou informações de todos os matizes, sempre com a rubrica da exclusividade, do ineditismo, do furo de reportagem, disso e daquilo. Todos tinham uma receita antecipada da tragédia. Enquanto isso, as besteiras midiáticas sufocavam a população. Você, que com paciência chegou até este ponto do texto, pode não saber, mas a tragédia do Metrô paulistano ocorreu por ignorância gramatical, porque não deram importância aos vernáculos que frequentam o idioma dessa tresloucada Terra de Macunaíma. E o acidente do Metrô foi noticiado de todas as formas pela mesma razão.
A obra foi erguida ao lado de uma rua batizada, em tempos outros, com o nome de Sumidouro. E ninguém – engenheiros, técnicos, autoridades, gênios de plantão e jornalistas – se preocupou em saber o significado da palavra “sumidouro”, até mesmo antes de comprar o primeiro saco de cimento para a obra. Na ocasião, coube a este reles jornalista, que ora lhe escreve, revelar aos midiáticos que brigavam por um furo de reportagem o enigma, que deveria ser obrigação de qualquer profissional da imprensa. “Sumidouro” é uma falha geológica, uma fenda no subsolo por onde algo desaparece. Como desde a infância passei centenas de vezes por essa rua, um dia, ainda criança, resolvi abrir o dicionário e procurar a tal palavra. E não foi por acaso que o acidente ocorreu. A obra do Metrô escapou pela tal fenda.
Parem e pensem, ora pois, jornalistas deste vasto Brasil varonil, porque copiar “press release” sem ao menos ler o seu conteúdo qualquer idiota faz!
Voltando ao assunto… A tragédia de Santa Maria está consumada, o que é triste e lamentável, e o Brasil está de luto. De agora em diante deve-se, em respeito aos que morreram e aos seus familiares, evitar conjecturas hipócritas, “achismos” desnecessários, opiniões descabidas, previsões absurdas. Muito menos deve-se divulgar fotos e imagens das vítimas nos meios de comunicação e nas redes sociais, pois esse comportamento só reforça o grau de desumanidade do ser humano, que para estar em evidência sequer pensa no que representa pisar no cadáver alheio.