(*) José Nêumanne Pinto –
Certa vez, Ariano Suassuna foi ao Palácio da Redenção, sede do governo da Paraíba, na Praça João Pessoa, no centro da capital, batizada com o nome do maior inimigo de seu pai, João Suassuna. Lá foi barrado à entrada por um guarda instruído para não permitir que alguém adentrasse o recinto sem gravata. De camisa, calça e paletó de linho, como de hábito, o autor de O auto da compadecida, peça em que se baseou o filme de maior bilheteria do cinema brasileiro, retrucou:
– Olhe, a primeira vez que entrei neste palácio aqui foi nu, viste?
E era verdade: isso se deu em 27 de junho de 1927 num quarto do prédio decadente e saído do ventre da mãe, Rita de Cássia Vilar Suassuna. O pai, João, era presidente do Estado, como se dizia na República Velha. E ali começou a saga de um professor de aparência sisuda que, ao longo do tempo, de tanta comédia que escreveu para o palco, se tornaria o maior palhaço do Brasil, embora nunca tenha sido humorista profissional. Se o cearense Chico Anysio extraía personagens da observação da vida e os tornava reais, Ariano os punha no palco e, depois, brincava com a troça deles recorrendo à graça na cátedra universitária, nos gabinetes da burocracia e numa cadeira na Academia Brasileira de Letras. E, quando tudo isso apenas se esboçava no menino que berrava nu na sede do poder estadual, se desenrolava a tragédia política nacional, em cujo epicentro o palhaço octogenário também desempenhou seu papel.
João Suassuna, chefe do clã sertanejo de Catolé do Rocha, tinha sido substituído na presidência da Paraíba por João Pessoa, sobrinho do ex-presidente Epitácio, oligarca da várzea do Paraíba do Norte, e destinado a se tornar o estopim da Revolução de 30, que sepultaria a Primeira República para, depois de um interregno de arremedo institucional, mergulhar nas trevas do Estado Novo. João Pessoa, candidato a vice na chapa presidencial do gaúcho Getúlio Vargas, derrotada, foi assassinado a tiros pelo advogado João Dantas, aparentado e devotado dos Suassuna e do coronel Zé Pereira, de Princesa Isabel, que havia enfrentado a bala o poder paraibano, armado pelo federal, presidido por Washington Luís, que se preparava para empossar seu candidato eleito Júlio Prestes quando os políticos mineiros e as tropas gaúchas amarraram suas montarias no obelisco do centro do Rio, mandando o presidente deposto para o exílio. Acusado de manter ligações com os mandantes da morte do herói revolucionário, o pai de Ariano foi baleado e morto no centro do Rio em 1930. Corriqueiro seria vingar o patriarca assassinado, mas dona Ritinha nunca permitiu que a vingança levasse a prole a alguma loucura. Criado em Taperoá, terra da mãe, e, depois pelo resto da vida em Recife, o filho nascido no palácio sempre devotou ódio ao inimigo-mor do pai, recusando-se a chamar a antiga Filipéia de Nossa Senhora das Neves de João Pessoa e preferindo sempre designar a capital pelo nome do Estado, como era useiro fazer antes da Revolução de 30.
Ariano vingou-se em versos. Em 2000, selecionei um poema dele na antologia Os cem melhores poetas do século. Ariano protestou:
– Não sou poeta, poetas são os personagens dos meus romances.
Como negar, contudo, que era do estro do autor o magnífico soneto (modalidade em que era mestre) em que saudou o pai? “Aqui morava um rei quando eu menino / Vestia ouro e castanho no gibão, / Pedra da Sorte sobre meu Destino, / Pulsava junto ao meu, seu coração”.
A poesia, aliás, nele tudo originou. Em sua comédia teatral mais popular, O auto da compadecida, fundiu três folhetos de cordel, gênero poético popular por excelência. João Grilo e Chicó, os protagonistas, personificam a força do “amarelo”, que enfrenta valentões com sagacidade e graça. E tudo em Ariano tinha graça. Seu livro Introdução à estética, manual de ensino de teoria literária, é um show de erudição com pitadas de humor que rivalizam com as melhores anedotas de outra comédia dele, O santo e a porca.
Na última vez em que o vi no Centro Cultural Maria Antônia, da USP, em Higienópolis, fez uma palestra intitulada “O humor – de Aristóteles a Bergson”. Nunca uma plateia, formada por professorinhas de escola pública no interior de São Paulo, imaginou que pudesse rir tanto das peripécias do preceptor de Alexandre da Macedônia e do filósofo francês da virada do século 19 para o 20 com aspecto de agente funerário captado pelos pioneiros da fotografia em preto e branco.
É imenso o acervo deixado pelo intelectual que tornou Paraíba e Pernambuco, inimigos em 1930, um Estado só. Mas tudo pode ser resumido numa Aula-espetáculo, título do documentário de Vladimir Carvalho, que se tornou seu cavalo-de-batalha nos últimos anos. Mais do que dramaturgo, romancista (do genial A pedra do reino), professor, acadêmico secretário estadual da cultura ou mesmo o humorista em que se transformou já velho, Ariano foi, ao mesmo tempo, uma aula viva estupenda e um permanente espetáculo folgazão de inteligência, vida, senso de humor e savoir-faire.
(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.