(*) Ucho Haddad –
Pai… O meu foi e continua sendo a melhor das minhas referências, mas acima de tudo sempre será o meu maior objetivo. Não porque exista uma competição entre nós, até porque é covardia competir com alguém que não mais está no nosso convívio. O fato de o meu ter permanecido como objetivo maior se deve ao fato de ter me deixado a sede pelo saber. Os lentos e silenciosos movimentos de alguém que lia quase sem parar despertaram em mim o desejo pelo aprendizado. Com ele, meu pai, aprendi muito mais do que imaginei, apesar de muitas vezes nenhuma palavra ter balbuciado. Mesmo assim, conviver com ele, João Francisco, foi uma aula magna.
Silencioso, reflexivo quase que o tempo todo, coerente por natureza, de posições firmes, lógico em termos de vida, pragmático em questões políticas. Raciocínio muito além do limite da normalidade. Foi o que comprovaram, em pelo menos três ocasiões, alguns especialistas. Gênio! Isso jamais o fez melhor que o seu semelhante, pois sua essência e atitudes eram dominadas pela humildade. Aliás, humilde era a sua maneira plena de existir.
Um dia, o qual vez por outra ainda volta à mente, recebi possivelmente uma das piores notícias. Meu pai havia partido antes da hora. Tão preciso e comedido nas atitudes, fez algo que raríssimas vezes encontrou espaço em sua célere existência. Chamou-me para almoçar em um restaurante simples e próximo ao seu escritório. Reuniu pessoas queridas, algumas das quais não via há muito tempo – possivelmente décadas. Até mesmo um “cartola” do seu América de Rio Preto estava à mesa. Caipira na certidão de nascimento e ainda mais na alma, estava lá ele com seu inseparável borzeguim. Suas botinas ultrapassavam os limites da marca registrada de alguém que nunca perdeu o it interiorano. Uma espécie de extensão do próprio corpo. Era uma despedida. Já havia feito o mesmo uma semana antes na própria casa, naquele dia fez com os mais chegados. Incluiu-me no seu regabofe derradeiro.
Muito mais do que a saudade deixada por alguém com quem pouco tempo tive para conviver, não apenas pelo fato de o destino ter imposto a separação, mas principalmente porque seu caminhar lento e compassado escondia alguém de interior turbilhão, ficou o exemplo de um ser humano justo. Na partilha dos seus bens, a mim coube, muito antes do ato em si, o melhor quinhão: a forma de raciocinar, pensar, agir, enfrentar desafios. Enfim, de encarar a vida. O valor disso era tamanho, que abdiquei do material que me cabia. Ou seja, o velho João deixou-me o DNA.
De tão parecidos que éramos, jamais consegui chamá-lo de pai. Era como se estivesse a chamar a mim mesmo de pai. Algo imperceptível, mas a olhos terceiros a ausência do chamamento convencional reluzia de forma estranha. Nossa relação transcendia, como ainda transcende, a conexão pai e filho. Conversávamos como se fossemos inseparáveis parceiros em uma missão maior. Convivíamos sob o silêncio recíproco dos pensantes, nos aproximávamos na sombra das divergências costumeiras. Conflito de gerações. Percebi isso muito tempo depois de sua partida.
Nos primeiros momentos após sua despedida tive de conviver com algo inesperado. Na rua era parado por desconhecidos que em tom afirmativo me perguntavam: você é filho do João? E inúmeras vezes, talvez algumas centenas, respondi orgulhosamente que sim. Um dia resolvi mudar o discurso, inverter o binômio. Sempre tendo em mente que a ordem dos fatores não altera o produto. Decidi que daquele momento em diante, sem romper a união parental, não mais seria filho do João. Ele seria pai do Ucho. Precisava ser eu ao caminhar na estrada da vida, dentro da minha competência. Fui impelido a superá-lo. E desde então tornei-me cada vez mais parecido com meu pai.
Esse movimento fez com que nossas semelhanças ficassem mais evidentes. Tão marcantes eram, que cheguei a pensar que as nossas histórias haveriam de se confundir com o passar do tempo. Até determinado ponto, não por surpreendente coincidência, muitos fatos da vida de cada um se repetiram como o traço deixado pelo papel carbono. Eram reflexos côncavos e convexos, eram ecos de um silêncio profundo. Isso trouxe ao menos uma preocupação. Seria a minha despedida também aos 49 anos? Também por questões profissionais, por enfrentar os poderosos? Se a sequência da vida é embalada pela lógica, tudo indicava que sim. Dos 48 aos 49 anos vivi uma tenebrosa contagem regressiva, mesmo sendo um destemido. Entendia que ainda tinha muito a fazer, como ainda tenho e espero ter cada vez mais. Ultrapassei os 49, os cinquenta chegaram e cá estou na lida. Sendo cada vez mais Ucho, sendo cada vez mais João.
Mesmo sabendo que os tempos são outros, que a modernidade é corrosiva, tentei imitá-lo no papel de pai. Para isso precisava deixar de lado nossas muitas e gritantes semelhanças. Fiz o meu melhor – e continuo fazendo –, mas reconheço que nem de longe consegui essa equiparação. João foi e sempre será meu eterno professor. Diz a sabedoria que o discípulo, via de regra, supera o mestre, mas no quesito pai continuo correndo atrás. Ao seu modo, silencioso quase como um autista, foi um craque.
O maior legado foi o de querer mudar o status quo a partir do raciocínio lógico, da determinação implacável, do pensamento cristalino, da superação espartana, da coragem paulatina, do destemor inteligente. Deixou saudades, deixou exemplos. Deixou-me aquilo que tinha como desafio maior: lutar sempre. A cada dia que surge deparo-me rotineiramente com dois persistentes desafios, dos quais não abro mão: superar o João, superar a mim mesmo. É isso que busco de forma incessante, pois assim ensinou-me o professor que nunca consegui chamar de pai.
Dizer que todo o pouco que vivemos e convivemos foi excepcional, João, seria miopia do raciocínio. Somos e seremos um capítulo do outro, histórias que se repetem, objetivos que se misturam, pensamentos que se enfrentam, decisões que se completam. Valeu, João, porque continua valendo. Feliz sempre, feliz.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.