Marli Gonçalves –
Que tal? A primavera vindo aí, mil flores, mil amores, mas a secura é tamanha que não há nada melhor do que esses espécimes para nos descrever de forma precisa, a nós e ao momento. Uma selfie especial para a tal secura desértica, não só de água, mas de inteligência, bom-senso, boa vontade, educação… assim por diante, que a lista é grande de tudo que anda faltando
Vocês aí me desculpem, mas é uma das únicas formas que vejo para nossa sobrevivência. Não precisamos exatamente virar cactos em toda a sua plenitude porque senão não poderemos mais nem nos esbarrar, e isso não seria nada bom. Não poderíamos mais nos abraçar ou fazer amor. Trabalhar ou outras atividades até que daria porque se você pensar bem já tem muita gente que bota casaquinho de espetos assim que sai da cama, e, pior, fica se aproximando, se encostando, cutucando e incomodando todo mundo que encontra durante o dia inteiro.
Nesta primavera, podemos só nos fantasiar de cactos, ou neles buscar referências sobre quais são as suas formas de resistência. Porque a gente vai precisar muito, de qualquer forma, aconteça o que acontecer, e o que não temos a menor ideia do que será – precisaremos resistir bravos, em pé, formando barreiras. Por exemplo, sabe por que os cactos têm espinhos? Primeiro, servem para se proteger de predadores, que é exatamente o que não falta nessa nação. Além disso, os espinhos são como folhas, mas no caso aparecem para que não haja desperdício de nenhuma gota além do necessário. E é melhor ser cacto do que porco espinho hão de convir.
Ou seja, se fôssemos cactos conseguiríamos nos proteger de tantos predadores e situações que surgem todo santo dia, de todos os cantos, e que estão tornando difícil a vida aqui em nosso país. Adianto que gosto deles, esses negocinhos secos e misteriosos que podem ser tão diversificados como somos nós, ou muito feinhos e mirrados, ou belos, grandes, e botando belas flores para fora. Também são libertários, pouco dependentes de nossa benevolência e memória, aguentando firme quando esquecemos de lhes dar – até só uma vez por mês – aquelas gotas de água que já os saciam. Do jeito que a coisa anda, gota de água será item de primeiríssima necessidade, e nem gosto de pensar nisso.
Cactos também sempre me lembraram gente sofrida, que resiste. Coisas áridas, chão seco, terra batida, bichos como o calango, e pessoas tipo cangaço, Lampião, Maria Bonita. Sinto um ar de dignidade nos cactos, mesmo eles sendo amargos. Mas ao mesmo tempo são meio que irmãos das… suculentas! Suculentas: uma palavra que dá água na boca. Contradições são boas e eu gosto.
A imagem de nós, os cactos, como eu ia dizendo, chegou junto com o pensamento sobre a primavera, minha estação predileta, e o que sempre me induziu a fantasiar – devo ter lido livros infantis em excesso – vendo tudo frutificar, casais se encontrarem, acasalamentos, arrulhos de pássaros construindo ninhos, além de simbolizar o nascimento e a renovação. Só que a realidade me espetou. Falta tudo, faltam condições para esse mundo paraíso perfeito eldorado. Falta até a água. Não é hoje, não é amanhã, acaba.
Me toquei principalmente do deserto de ideias, do tamanho das indefinições que estão à nossa frente, e que não há bola de cristal translúcida o suficiente para arriscar um palpite por mais que a gente a esfregue sofregamente. Melhor mesmo ficar paradinho, se fingindo de cacto. Tô falando. Tô avisando.
Ando impressionada com a incapacidade vinda de tudo quanto é lado, tanto quanto a violência. Ando impressionada com o egoísmo que aqui em São Paulo escoa na forma da água das mangueiras com que se lavam calçadas, carros, ou mesmo é desperdiçada jorrando nos vazamentos ignorados pelo tais poderes públicos. Ando mesmo impressionada com a passividade de nosso povo, esperando um salvador ou uma salvadora, como é mais provável.
Lembro – vejam só – de jacas, gordas, apáticas, que vão levando os galhos até o chão se não forem recolhidas. Ainda preferirei ser cacto.
Nessa indefinição toda, faria uma pesquisa especial sobre como as pessoas prevêem os próximos dias e meses. Tenho certeza de que o número de Não sabe/Não respondeu vai ser o maior de todos.
A gente pode ser cacto, mas não é burro; tem de aprender pelo menos alguma coisa com eles, que não sabem de nada, nem têm nunca nada a declarar.
São Paulo, lugar sem lazer que ganha agora quilômetros de uma pistinha vermelha, 2014
(*) Marli Gonçalves é jornalista – – Pelo menos teremos um bom material para fazer nossa própria coroa, senão de flores, de espinhos.
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