(*) Rizzatto Nunes –
A simples existência da pena de morte em alguns países (inclusive do primeiro mundo, como nos Estados Unidos da América) é a prova de que falta muito para a humanidade se tornar efetivamente civilizada.
Em pleno século XXI, a mera discussão a respeito da imposição da pena de morte, pelo menos nos países do ocidente, deveria soar ultrapassada e antiquada. A pena capital de há muito se mostrou incompatível com a dignidade atingida pela razão ético-jurídica universal.
Vejo-me obrigado a abordar esse assunto em função da execução do brasileiro Marco Archer Cardoso Moreira, de 53 anos, morto por um pelotão de fuzilamento na Indonésia neste último sábado, dia 17 e dos comentários de muitas pessoas, que se manifestaram via redes sociais ou por inserções nos rodapés dos artigos publicados, defendendo a pena capital. São, certamente, pessoas desprovidas das necessárias informações básicas a respeito do tema.
Anoto, em primeiro lugar, que qualquer tentativa de implantação da pena de morte onde ela foi abolida não passaria de simples exploração demagógica e política e também fruto de incompreensão do significado de Estado de Direito Democrático.
Abordo, assim, na sequência, alguns elementos que envolvem o assunto e que já publiquei há muito tempo em uma obra (i).
1. Direito e (pena de) morte
Digo desde o início: o Direito é incompatível com a morte, ou precisamente com a pena de morte.
O Direito postula pela vida, luta pela sua manutenção e dignidade. Onde não há vida não há Direito. Foram séculos de evolução — a bem da verdade, aos trancos e solavancos — para que o Direito se fosse depurando de mazelas que não lhe poderiam ser inerentes. O Direito extirpou os castigos físicos, a escravidão, a tortura, o racismo, dentre outras iniquidades (ainda que, de fato, tudo isso exista).
Logo, estudar Direito é, desde logo, a priori conhecer certos princípios, e dentre estes está o da necessária garantia da vida humana, como condição básica da própria existência social. O Direito atual em sua melhor vertente, a mais humanitária, é fruto de uma razão que se foi educando e tomando consciência dos necessários pressupostos éticos que deve¬riam fundá-la. Essa racionalidade é o grande trunfo da Ciência do Direito, a grata contribuição que o pensamento jurídico nos trouxe.
E a estatura da humanidade se mede pelo implemento dessa racionalidade, cada vez mais humanizada. Daí que o Estado, formado e edulcorado pelo Direito, há de ser escravo dessa mesma raciona¬lidade, e, em sendo seu guardião, deve preservá-la como o prêmio conferido pela história.
Matar alguém é ato bárbaro, ignóbil, mordaz. De per si viola a base da humanidade, já que a ninguém é dado tirar a vida de outrem.
Então, por consequência, o Estado, legítimo representante da segurança das pessoas, não pode — por maior força de razão — ele mesmo praticar o ato ignóbil: não pode tirar a vida de alguém.
2. Pena de morte e sanção
Não vou aqui abordar completamente o conceito de sanção, como elemento da norma capaz de auxiliar ou possibilitar o cumprimento da determinação normativa. Interessa-me apenas o fato de que a sanção é entendida como componente próprio da norma jurídica, e que no campo do direito penal está ligada à consta¬tação do fato praticado, que se enquadra no tipo delituoso. Isto é, a sanção, para o interesse deste artigo, é entendida como a imputação de uma pena a alguém que cometeu um delito criminal, tipificado no Sistema Jurídico.
Acompanhando o professor Miguel Reale, temos de dizer que, em “última análise, na e pela pena de morte, a pessoa é negada como tal, é convertida em coisa” (ii). Na realidade quem “cumpre” a pena é o Estado.
Evidencia-se, pois, nesse aspecto a contradição da função do Estado ao aplicar a pena de morte. Na sua execução, o Estado faz com o condenado o que (na maioria dos casos de condenação) ele fez com a vítima. Estado e condenado tornam-se iguais.
Penso, em suma, que, analisada à luz de seus valores semânticos, o conceito de pena e o conceito de morte são entre si lógica e ontologicamente irreconciliáveis e que, assim sendo, ‘pena de morte’ é uma contradictio in terminis”.
3. A motivação
Vai-se dizer que o Estado tem um “bom” motivo para matar, enquanto um assassino não. Isto é, a morte decretada pelo Estado seria justa; a decretada pelo homicida não.
Esse sofisma é bastante corrente, mas não resiste a uma avaliação crítica.
Se fosse buscar “motivos” para tirar a vida de alguém, por certo o Estado seria o que tem menos razões para fazê-lo. Nem vamos tratar do aspecto da justiça da decisão, porque é evidente que não se pode falar em tirar a vida de outrem de forma justa: é contradição própria.
O Estado diante do assassino é aquele que tem o dever de conhecer — processual e materialmente — os fatos relativos ao crime. Depois de avaliá-lo, consistentemente deve proferir uma decisão racional. E a morte do criminoso é tudo, menos decisão racional.
A pena de morte é a instituição da vingança pública, é pura irracio¬nalidade.
Sabe-se muito bem que o Direito se firmou contra a vingança, vingança privada que foi banida. E o foi porque sua irracionalidade evidente — apesar da legitimidade — punha em risco a própria organização social.
Ora, não foi para transformar a vingança privada em pública que se a proibiu. O Direito é o império da razão. Fora dessa esfera é a barbárie.
4. O rebaixamento do Direito
Quando o Estado aplica a pena de morte faz exatamente o mesmo que o assassino: simplesmente tira a vida de alguém. E os motivos não importam mais. São irrelevantes. Estado e homicida passam a se equivaler. O Direito fica rebaixado ao nível do infrator, assassino. Ambos passam a ter, como ponto comum, o desprezo pela vida humana.
E o Direito e o Estado, que deviam ser exemplo de conduta para pessoas, passam a incentivar a raiva, a cólera, a torcida por vingança. É o estímulo à irracionalidade, que o Direito abandonou.
O assassino é alguém que precisa ser retirado do meio social e punido. Mas como é que se poderia admitir que o Estado fizesse o mesmo que ele? É a pura selvageria, a volta a tempos imemoriais que o Direito deixou para trás por ter evoluído.
Em se tratando de outros delitos que não o homicídio – como é o caso do brasileiro fuzilado, condenado por tráfico de drogas – o mergulho no obscurantismo é maior ainda. Sei que o medo diante do crime, muitas vezes, leva as pessoas a apoiarem penas severas e excessivas como a de morte, pois vivem a ilusão de que isso seria uma solução. No caso do tráfico de drogas, fica cada vez mais claro que as políticas de repressão simplesmente não dão certo e que a questão é antes de saúde pública que de criminalidade. Naturalmente, o tráfico pode ser reprimido, mas sem que o Estado, a sociedade e o Direito vivam no estágio atrasado da violação da dignidade humana.
5. A ilusão do plebiscito e da participação da população
Outro argumento falacioso é aquele que diz que se deve deixar o povo decidir a respeito da pena de morte. Far-se-ia um plebiscito para ouvir a voz do povo.
É importante colocar com todas as letras que há questões que não podem passar por plebiscito, o que não implica, de forma alguma, um ataque à democracia. Aliás, nem sequer um arranhão a atinge com o que diremos. Antes, o contrário, evitar a demagogia que se faz de vez em quando em torno do plebiscito é plenamente favorável ao desenvolvimento democrático.
Com efeito, nas questões que envolvem a Ciência e os mais elevados valores éticos conquistados pela humanidade impõe-se, em vez de consulta, educar a população para mostrar o caminho correto.
O público, usualmente vítima de manipulação de toda espécie, julga de maneira irracional, levado pelo sabor das emoções, e, claro, é impulsionado pela violenta realidade. Não pode ele, público, construir um critério racional para decidir adequadamente em questões como a pena de morte.
O senso comum não é apto para pensar técnica, ética e racionalmente essa questão. É a Escola de Direito, o pensamento jurídico, que, extraindo da experiência histórica um rastro evolutivo, vai decidir sobre o tema. E isso já foi feito: “não” à pena de morte.
De qualquer maneira, para elucidar de vez os meandros da falácia do plebiscito, vale a pena lembrar certos fatos e argumentos. Há questões que não podem ser submetidas a consulta popular. Cito o exemplo dado por Evandro Lins e Silva: “Ninguém indagará se o povo quer ou não quer determinado tipo de vacina, cuja aplicação a ciência demonstrou ser a maneira de prevenir doenças e epidemias” (iii).
Aliás, ao que parece não passa na cabeça de ninguém — político ou não — submeter a plebiscito a supressão de outras garantias conquistadas pelo Direito. Por exemplo, o direito à propriedade. Seria válido perguntar à população se ela quer extinguir o direito de propriedade imóvel, repartindo os atuais bens entre todos? Ou, então, a supressão de certos direitos humanitários e/ou religiosos conquistados por minorias? Seria válido?
Claro que não.
Como também não o é para a pena de morte.
6. Aspectos constitucionais
A partir da Proclamação da República, nós, brasileiros, não temos nenhuma “tradição” constitucional na questão da pena de morte. Tirando dois episódios rápidos e que são exceção jamais utilizada, nossas Constituições Federais sempre a proibiram. O primeiro deles veio com a Carta Constitucional de 1937, que permitia a aplicação da pena de morte, possibilidade abolida com a Constituição democrática de 1946.
De notar desde já que é no regime autoritário do Estado Novo de Getúlio Vargas que surge a pena de morte, e, com sua deposição e a consequente “reconstitucionalização do País” (conforme se intitulou o processo), a pena de morte novamente desapareceu. Aliás, lembre-se, então, de que a Constituição de 1946 (como a de 1988) nasceu de uma Assembleia Nacional Constituinte democraticamente eleita.
Com o golpe militar de 1964 veio a Carta Constitucional imposta de 1967. Todavia, nesse primeiro momento do regime, foi mantida a tradição republicana de proibição da pena de morte.
Contudo, o Ato Institucional n. 14, de 5 de setembro de 1969, alterou o § 11 do art. 150 da Carta de 1967 para admitir a pena de morte. E essa modificação acabou sendo acolhida pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, preservada que foi no § 11 do art. 153. E como consequência a chamada Lei de Segurança Nacional foi alterada para prever a pena de morte (Decreto-Lei n. 898, de 29-9-1969).
Com a volta da democracia e eleição da nova Assembleia Constituinte, a Constituição democrática de 5 de outubro de 1988 aboliu definitivamente a pena de morte, tornando a regra absoluta, uma vez que constituída em cláusula pétrea (letra a do inciso XLVII do art. 5ºc.c. o inciso IV do § 4º do art. 60da Constituição Federal).
Assim, ao menos no plano constitucional, o Brasil é daqueles que se realizou na correta direção da humanização de seu sistema legal. Esse é um dos mínimos estágios que todas as nações do planeta hão de atingir até, algum dia, chegarem a uma verdadeira civilização.
Referências
i – Em meu Manual de Filosofia do Direito (1ª edição de 2004). São Paulo: Saraiva, 6ª. Edição, 2015., Cap. VII, págs. 345 e segs.
ii – O Direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1992. Ensaio XII: “Pena de morte e mistério”, pág. 284.
iii – Pena de morte. In Revista Forense, vol. 314, p. 220.
(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.