(*) Rizzatto Nunes –
Começo com um caso narrado, recentemente, por meu amigo Outrem Ego, que envolve relações de consumo de forma indireta (na questão da administração da segurança pública). Ele contou o seguinte: “Estava eu dirigindo meu automóvel ao lado de uma pista exclusiva e vermelha para bicicletas. Na rua pela qual eu seguia, mais à frente, a pista vermelha dava uma volta numa praça e somente ia encontrar novamente a rua onde eu estava, uns duzentos metros adiante. Eu trafegava devagar junto dos demais e a meu lado ia um ciclista na pista. Quando chegamos à praça, ao invés dele seguir por sua pista exclusiva, ele simplesmente seguiu em frente pela avenida atrapalhando o trânsito e colocando em risco sua própria travessia. Eu não aguentei, abri a janela e disse: ‘Ei, sua pista é lá’ e apontei para a pista exclusiva. Mas ele, de forma muito cínica, olhou para mim, me mandou um beijinho com a mão, e disse: ‘Quem é você?’. Nem preciso dizer que fiquei muito bravo…”
Eu já contei aqui, nesta coluna, que esse mesmo amigo meu, certa vez interrompeu uma fila para reclamar da atitude de funcionários de uma loja que lhe impediam de pagar suas compras. E que, com a discussão, ele bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Lembram? Os demais começaram a protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Outrem Ego ainda tentou retrucar dizendo, um pouco abalado: “Eu estou lutando pelo direito de vocês!”. Mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que, desanimado, jogou a toalha. A essa altura, sua esposa havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou e foi embora.
Agora, caro leitor, quero lembrar outro caso envolvendo ruas e trânsito que, aliás, nem preciso ilustrar com algum fato específico, pois todo mundo conhece: as faixas de trânsito. O desrespeito para elas está dos dois lados: automóveis que não param para pedestres e pedestres que insistem em atravessar fora da faixa (ainda que ela esteja próxima).
E, para terminar os exemplos, lembro que, nos últimos dias, surgiu uma polêmica a respeito do direito da companhia que distribui água no Estado de São Paulo poder ou não impor multa àqueles consumidores que tivessem aumentado seu consumo no período de fevereiro de 2013 a janeiro de 2014, por causa da crise de falta d´água. Bem, independentemente do aspecto formal e legal da aplicação da multa, e também de quem seria a culpa pela escassez da água, o que chamava a atenção era o fato de que, num momento desses, ainda existissem pessoas que, ao invés de pouparem, haviam aumentado o consumo, algumas delas esbanjando o produto essencial para lavar calçadas! (Não estou, obviamente, me referindo àquelas pessoas que tiveram aumento de consumo justificáveis nem àquelas que tiveram registrado aumento de consumo por passagem de ar pelos canos e pelo hidrômetro ao invés de água. Reconheço, também, que nesse caso da água, muitas pessoas têm feito uma economia elogiável).
Pergunto: como explicar esses comportamentos?
Há, naturalmente, vários caminhos.
Podemos, por exemplo, abordar um aspecto estritamente jurídico: parece que algumas pessoas esquecem ou não sabem que nesta nossa era dos direitos existem, ao menos, duas mãos de direção: uma da garantia dos direitos e outra da correspondente obrigação. Especifico melhor para não parecer que estou me referindo apenas à estrutura que leva em conta o sujeito ativo e o sujeito passivo de um direito subjetivo: refiro-me ao fato de que o estabelecimento de uma prerrogativa composta num direito subjetivo, numa dada sociedade, impõe, muitas vezes, ao titular, certas obrigações simultâneas ou determinações específicas para seu legítimo exercício. Isso explicaria porque o ciclista, os pedestres e os motoristas estariam abusando de seu direito não seguindo a regra, mas não seria suficiente para explicar o comportamento das pessoas nos outros dois casos.
Poderíamos dizer, claro, que cada um deles sugere uma explicação por um modo diferente. Concordo. Poderíamos. Pensemos, pois, em mais um: seria possível explicar o comportamento pela via da consciência, ou melhor, da falta de consciência do indivíduo em relação a seu papel na sociedade. Esse caminho nos leva a outro, que gostaria de lançar como hipótese para nossa reflexão: a de que esses comportamentos, e tantos outros, têm como base um problema de educação. Quero dizer, de falta de educação em geral e de falta de educação para o exercício da cidadania em particular.
E, dentro do quadro daquilo que podemos apontar ser característica de uma pessoa educada, quero focar um aspecto: o da solidariedade, esse sentimento que nos leva a tomar consciência de nossa condição social; de que não somos uma ilha; de que pertencemos a uma sociedade de seres humanos iguais e diferentes ao mesmo tempo e que se relacionam sem cessar.
A pessoa educada sabe que tem direitos, mas também sabe que seu direito termina onde começa o do outro. Sabe que não pode apenas exigir, sem contribuir em troca, como se tudo pertencesse apenas a ela mesma (e a seu grupo mais próximo de familiares e amigos). Ela, por ser educada, conhece exatamente o limite de seus direitos individuais e tem ciência da responsabilidade social que o exercício desses direitos acarreta.
Na verdade, esse sentimento de solidariedade é o oposto de um outro, o do egoísmo. Sei que alguns classificam o egoísmo como algo instintivo, pertencente à natureza humana. Sem querer entrar nesse detalhe específico, que aqui não interessa, reconheço que na luta pela sobrevivência é mesmo possível identificar esse elemento do egoísmo como inerente ao ser humano em seu desenvolvimento pessoal e histórico. Mas, é exatamente aí que entra a educação. Por intermédio dela, a pessoa humana pode ir incorporando os valores mais elevados, dentre os quais o da solidariedade e, aos poucos, ir deixando de ser egoísta. (Anoto que estou tratando a educação em seu sentido lato; logo, refiro-me a todos os aspectos que podem ser chamados de educação formal ou não: vindos do grupo familiar, dos amigos, da religião, da escola etc.).
Nesta nossa sociedade na qual assistimos diuturnamente a demonstrações de selvageria e abusos de todo tipo, talvez esteja na hora de cultivarmos melhor nossa humanidade; é preciso, cada vez mais, que todos nós tomemos consciência de que nossa atitude no dia-a-dia, por mais individual que pareça, sempre afeta de um modo ou de outro toda a sociedade: diretamente aos que estão ao redor e indiretamente os que serão atingidos mais cedo ou mais tarde pela ação.
E, para terminar, caro leitor, como estou me referindo à solidariedade, indico este vídeo abaixo, produzido por uma seguradora tailandesa. Vale a pena assistir até o fim. Tem apenas 3 minutos:
(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.