A (in) segurança do consumidor no dia-a-dia

(*) Rizzatto Nunes –

rizzatto_nunes_02Certa feita, estávamos um amigo, grande jurista, e eu, aguardando num aeroporto para embarque em direção a um Congresso. Eu reclamava da má formação oferecida pelas escolas de direito, das falhas dos concursos públicos para as várias carreiras jurídicas e de como, apesar da aparente dificuldade que eles oferecem, muitos dos aprovados não são capazes de bem interpretar o sistema legal, de compreender o fenômeno social e jurídico em sua complexidade e, enfim, de exercer o mister que lhe foram confiados com as habilidade exigidas para a profissão. Muitos dos concurseiros, estudiosos diuturnos das questões usualmente utilizadas, mostram-se capazes de ultrapassar o concurso público assumindo a carreira escolhida (ou na qual haviam conseguido entrar, pois tentam muitas em diferentes setores). Ele concordava comigo e citava vários exemplos terríveis de estudantes que ingressaram em carreiras públicas sem jamais terem trabalhado um único dia na vida. Saiam dos bancos escolares apenas como estudantes, iam para os cursinhos e ficavam por lá alguns anos. Daí, passavam no concurso e em breve estavam acusando, julgando etc. Mas, sem experiência alguma.

De repente, ele me diz: “Sabe, estamos aqui falando da área jurídica por que a conhecemos mais ou menos bem, desde a Faculdade de Direito até a vivência nas carreiras. Mas, algo me ocorreu… Pergunto a você: nós vamos embarcar daqui a pouco num avião. Será que a pessoa que faz a manutenção da aeronave, foi boa estudante? Será que tem experiência? Será que entende bem do riscado? Ou, melhor, será que o engenheiro responsável entende mesmo do negócio? Quando alguém contrata um advogado, certamente, espera que o profissional saiba como agir. E se está aguardando um julgamento, acredita que o juiz saiba decidir e assim por diante. E, nós, pobres usuários das companhias aéreas? Com certeza esperamos que o avião esteja em perfeitas condições de voo, que o piloto e o copiloto estejam preparados para assumir o comando da aeronave, que estejam em boas condições de saúde etc.”

“Sim”, respondi. “Isso vale para qualquer profissão. Se vamos ao dentista, aguardamos que entenda o que nossa boca mostra. E, no hospital, que o médico nos avalie corretamente”.
“Estamos seguros de que nosso avião alçará voo, viajara e descerá em condições adequadas?” – ele perguntou.

“Acho que nem pensamos nisso”, conclui.

Esse é o ponto da reflexão para hoje: quando embarcamos num avião, não pensamos em problemas (nem devemos pensar para não passarmos nervoso…). É pressuposto que tudo funcione bem. Inconscientemente, aceitamos que não só todos os envolvidos na atividade sejam profissionais gabaritados como estejam no gozo pleno de suas faculdades mentais e em perfeito estado de saúde, bem alimentados, com o sono em dia etc.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman diz que vivemos tempos “líquidos”: estamos na idade da incerteza, isto é, tempos de estados líquidos em oposição à solidez representada pelos estados de certeza. Como obter algum tipo de tranquilidade em qualquer setor?

Em termos de segurança nos aeroportos, os fatos nos dizem que, ao que parece, alguém está cuidando do assunto. Em alguns lugares mais do que em outros, mas a verdade é que após o 11 de setembro, com o ataque às torres gêmeas de Nova York, em todo o mundo passou-se a cumprir rigorosos regimes de revistas de passageiros e controle dos transportes de bens. Será que os agentes de segurança entendem do assunto?

Ironicamente, a queda do Airbus A320 da Germanwings no sul da França, no dia 24 de março, mostrou que foi uma das regras de segurança implantadas que permitiu a ação suicida e criminosa do copiloto (Naturalmente, estou supondo para esta análise que, de fato, foi o copiloto alemão que deliberadamente derrubou a aeronave). Com a finalidade de impedir que terroristas invadam as cabines de pilotagem, foi determinada a colocação de portas blindadas para proteger a entrada e que ficasse assegurado que a porta somente pudesse ser aberta pelo lado de dentro (o comando de abertura fica na cabine).

Vi que, rapidamente, muitas companhias aéreas já determinaram que ninguém fique sozinho na cabine. Haverá sempre dois. Se o piloto sai para ir ao banheiro, entra uma aeromoça ou um comissário de bordo. Pergunto: será que adianta? Se o copiloto estiver determinado a derrubar o avião e matar 150 pessoas, será que ele irá poupar o comissário?

Muitas das regras de segurança não resistem a um plano elaborado por um simples terrorista iniciante. E ficam na aparência, tentando transmitir alguma tranquilidade aos usuários. Há muita discussão e insatisfação nesse tema. A questão dos líquidos, por exemplo. Muitos consumidores reclamam que não podem entrar no espaço interno de embarque carregando suas garrafas plásticas com água. Mas, lá dentro, podem comprá-las. E também não podem levar frasco contendo mais de 100 ml. Porém, pode portar mais de um. E, juntando algumas pessoas com alguns frascos abaixo de 100 ml é possível obter alguns litros etc. E será que é difícil que alguma pessoa má intencionada se infiltre entre os fornecedores de comida e bebidas dentro do local de embarque e entregue ao passageiro uma garrafa com líquido perigoso? Outra reclamação: não podem levar produtos pontiagudos, como uma tesourinha de cortar unhas, mas no jantar da área executiva são entregues garfos e facas. Há algum controle, mas a verdade é que até um inocente skate pode virar uma arma ou um, então, um mais inocente ainda cinto de segurar as calças pode ser usado de forma fatal para a vida de alguém…

Não vou referir aspectos explícitos de insegurança pública, especialmente porque no Brasil é simplesmente impossível andar nas ruas com tranquilidade. Fico apenas nesse da iniciativa privada, que envolve também muitos setores e que varia de país para país. Há perigos na guarda de bens nos hotéis, nos museus, nos restaurantes (evidente por aqui, onde, por exemplo, em restaurantes do tipo self-service, as pessoas são obrigadas a colocar comida no prato carregando a bolsa no ombro para evitar de serem furtadas!), nos transportes urbanos em geral, enfim, uma idade de incertezas e intranquilidade.

E, infelizmente, do ponto de vista da segurança dos produtos e serviços (e também da qualidade e da eficiência) é impossível que qualquer empresa ou órgão público consiga atingir o topo da certeza da inevitabilidade do dano decorrente de algum vício ou defeito. Por mais que se esforcem, por mais que desenvolvam controles de qualidade e segurança, alguma coisa sempre escapa por ser da própria natureza do produto ou serviço (uma falha mecânica, um desgaste inesperado etc.) ou por envolver a natureza humana (pessoas que cometem seus erros ou suas loucuras…).

Não há, pois, produto ou serviço sem vício ou defeito! Ou, como diz meu amigo Outrem Ego: “Até foguete da Nasa apresenta falhas… Para azar dos astronautas”.

Então, para concluir, percebe-se que, nesta nossa era da incerteza, oferecer segurança real para o consumidor é muito difícil. Esse é um dos desafios dos tempos atuais.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

apoio_04