Silêncio da pena – O último livro do escritor alemão Günter Grass foi “Grimms Wörter” (Palavras de Grimm, em tradução livre), publicado em 2010 e ainda não traduzido no Brasil. No final da obra, o Nobel de Literatura se vale de palavras do poeta barroco Andreas Gryphius para caracterizar a morte como “marco fronteiriço de todo poder, meta final de toda aspiração”.
“Considero o livro uma despedida. É uma espécie de testamento literário”, diz Marcus Mazzari, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, autor de um livro e de ensaios sobre a obra de Günter Grass. O autor morreu aos 87 anos na segunda-feira (13), em Lübeck, na Alemanha.
Seu romance de estreia, “O tambor” (1959), renovou a literatura alemã no pós-guerra. Em meio ao rastro de destruição, o protagonista Oskar Matzerath – um menino interno de um hospício – se recusa a crescer e a entrar na sociedade dos adultos.
“Grass tem uma certa ironia muito sutil. O livro teve um enorme impacto sobre mim pela imaginação, ousadia e originalidade do autor. Minha admiração por Grass foi e continua sendo imensa”, disse à Deutsche Welle a escritora brasileira Lya Luft, que traduziu quatro romances de Grass, entre eles, “Um Campo Vasto” (Editora Record), que satiriza a reunificação alemã.
De todos os autores alemães que traduziu, entre eles Bertold Brecht e Thomas Mann, Grass sempre ocupou posição de destaque para Luft. “A principal influência dele reside na inovação, no estilo, na franqueza e em críticas sutis ou claras a certos establishments.”
Grass propôs uma forma peculiar de recontar histórias e, assim, rompeu com um dos mais importantes aspectos da tradição literária alemã: o romance de formação, iniciado por Goethe. No gênero, apresenta-se em detalhes o desenvolvimento físico, moral, psicológico e político do personagem.
“O protagonista [de O tambor] Oskar Matzerath tocando o tambor em meio ao burburinho geral do mundo lá fora e da alma aqui dentro é uma das maiores ironias ao universo cultural e filosófico da tradição alemã”, exemplifica o escritor e tradutor Marcelo Backes, doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburg.
“A implacável crítica à tradição mais prestigiosa do romance alemão também se revela, do ponto vista político, como uma poderosa ‘literatura de advertência’”, observa Mazzari.
Essa quebra de estrutura narrativa também é percebida de forma indireta no romance realista Dois Irmãos (2000), do escritor brasileiro Milton Hatoum.
Polêmico e criticado
Premiado com o Nobel de Literatura em 1999, Grass sempre foi engajado politicamente. O escritor era a favor de ideias de esquerda, defendeu refugiados e se posicionou sobre guerras em todo o mundo. Seu principal papel como observador crítico foi instar a Alemanha a não esconder o passado nazista.
Mas o escritor, considerado um ícone moral da Alemanha, revelou seu próprio segredo apenas em 2006, na autobiografia intitulada Nas Peles da Cebola. Aos 17 anos, Grass foi recrutado pela Waffen-SS, uma organização paramilitar ligada ao partido nazista. “”sso pesava sobre mim”, destacou ao jornal alemão “Frankfurter Allgemeine Zeitung”.
A revelação provocou duras críticas, com adjetivos como “hipócrita”. “Achei patética a reação à ‘revelação’”, afirma Luft. ‘Provavelmente não havia outro caminho nem saída naquele momento. Ele próprio se declarou assombrado com a repercussão. Considero uma indignidade.”
Em 2012, o poema “O que deve ser dito” rendeu a Grass acusações de antissemitismo. No texto, ele diz que Israel coloca em risco a precária paz mundial e acusa o país de planejar um ataque atômico preventivo contra o Irã.
“Alguém que pertenceu à SS tem direito de fazê-lo? Em meio ao burburinho, esqueceram-se de que ele também criticou a Alemanha por fornecer submarinos às forças israelenses”, avalia Backes. “Grass gostava da polêmica e achava que era parte da atividade de escritor interferir no destino político do mundo e assumir o papel de consciência da nação.”
Para Luft, o engajamento político e a dedicação à literatura sempre formaram uma unidade, “o que lhe dá ainda mais destaque”.
A polêmica que Grass e sua obra provocariam em todo mundo ficou evidente já numa das primeiras resenhas sobre “O tambor”. O jovem escritor teria conquistado “o direito de ser execrado como um escândalo satânico ou então enaltecido como escritor de primeira grandeza”, escreveu Hans Magnus Enzensberger, um grande intelectual alemão. (Deutsche Welle)