O que sobrou dos Jogos?

(*) Ucho Haddad

ucho_24Muito antes de começar a 31ª edição (era moderna) do maior evento esportivo do planeta, uma questão pairava sobre os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro: qual seria o legado. Alguns disseram que praças esportivas seriam a porção mais relevante da herança olímpica, mas é concreto demais, literalmente, para ser verdade. Outros apostaram na imagem que cada um levaria do País, como se isso fosse possível positivamente falando. É difícil acreditar nessa boa impressão, exceto se levarmos em conta o espírito do povo brasileiro: caloroso, receptivo, acostumado com o “faz de conta”, fiel ao malfadado jeitinho.

Quero migrar para o intangível, para aquilo que de fato faz a diferença. Não será um estádio fincado aqui ou acolá, não será uma medalha a mais ou amenos na estante de quem quer que seja, a fazer a diferença. Quero alcançar o inalcançável, aquilo que é possível levar para sempre sem que ninguém veja. O maior legado dos Jogos nem de longe são as vitórias suadas, os pódios merecidos, os triunfos alcançados, as ovações oferecidas. É, sim, a competição saudável, a convivência civilizada, a superação contínua. Aliás, superar é o verbo da Olimpíada que, sob os braços abertos do Cristo Redentor, transcorreu dentro da normalidade. E a superação teve todas as cores, todas as bandeiras, todos os hinos, todos os enredos de vida.

A superação é parte integrante do ser humano, que muitas vezes desconhece a própria capacidade de ultrapassar limites. Vencer é possível, necessário para a existência do homem. Contudo, a derrota faz florescer a maior de todas as vitórias. Afinal, cada um é o melhor produto dos seus próprios erros. Não se trata daquela vitória que o mundo quer ver e aplaudir, apenas porque a raça humana precisa de heróis de aluguel. Falo daquela vitória silenciosa, intimista, privada. Possível de sentir na alma, que impulsiona a crença, afaga o coração, permite ultrapassar fronteiras, sem violar o bom senso.

Os Jogos deixaram lições, exemplos a serem seguidos, fatos que não merecem bis. Desconhecidos tornaram-se ilustres (ainda bem), celebridades esportivas confirmaram a fama (o que era óbvio), irresponsáveis perderam o lustro (azar deles). Na maioria dos casos, quatro anos de dedicação desapareceram em minutos, talvez em segundos. O esporte é assim, exigente; a competição não é diferente, implacável. O empenho surgiu como um raio, rasgou o vento, singrou os mares, voou na água. Acariciou a relva, arranhou o céu, marcou a areia, rodopiou no ar, equilibrou-se no solo. Eis a superação, eis a vitória.

Não importa quem venceu, quem perdeu. Vencer a si mesmo, a todo instante, é a ordem do dia, de todos os dias. Quando esse desafio sem fim desaparece, algo errado está a acontecer ou o fim deu o ar da graça antes da hora. Não sei se é o fim da vida, mas certamente é o fim de uma razão de existir. Se a vida é uma prova diária, amanhecer será sempre vitória. Por isso não há derrota, mesmo que triunfos inenarráveis deixem de emoldurar o cotidiano. Aliás, existir é a vitória que se confunde com a disputa, que vem antes, depois, sempre uma da outra.

Para um Brasil de pernas para o ar, os Jogos deixaram muito mais que um legado, uma arena, um pódio, uma raia. Deram-nos uma importante lição, que pode ser inesquecível, a depender da forma como cada um a vê. Ensinaram que não há ponto final, que o fim é o sinal randômico do começo, do recomeço. Que é preciso ter vontade para ser livre e ir além dos limites, para cobrar a medalha da cidadania que tanto merecemos. Ser cidadão não é aceitar o que é imposto, mas, sim, exigir o que nos é devido.

Torcer por esse ou aquele atleta verde-louro não é sinal de patriotismo. Até porque, a teoria da pátria em chuteiras, do genial Nelson Rodrigues, perdeu-se no tempo, no espaço, na dura realidade do “salve-se quem puder”. Ser patriota é ressurgir mais forte e vencedor na derrota, é brigar por um pódio para todos, é prestar continência à superação, é repicar no silêncio da mente o que se canta nas plagas do esporte.

De dribles na política o Brasil está cheio. As jogadas da incompetência oficial ninguém aguenta mais. É preciso entrar em campo e virar o jogo, tomar o apito e mostrar quem manda. Com a determinação de um vencedor, com a paciência de um buteiro. Afinal, a arena da vida não é berço esplêndido.

Longe do “complexo de vira-lata”, mas livre do salto alto, faça o bem, dê o seu melhor, faça pra valer. Faça com que o Brasil de fato seja a pátria amada. Faça, como se a conquista de hoje fosse o desafio de amanhã, a derrota do passado, a vitória no futuro. Faça, simplesmente faça! É isso, a lição de fazer, que sobrou dos Jogos, além da conta milionária a ser paga.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

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