(*) Ucho Haddad
Vencidas as primeiras horas pós-vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos, chegou o momento de ir aos fatos, pois sobraram profetas do apocalipse ao redor do planeta. No Brasil a situação foi tão vexatória, que em muitos momentos os comentários foram nauseantes, sem contar o viés ignaro dos mesmos.
Analisar as eleições norte-americanas – antes ou depois dos resultados – exige, muito além de conhecimento acerca de política internacional, compreender como funcionam os Estados Unidos. Refiro-me não apenas à vida nas grandes cidades, que na maioria das vezes passam uma realidade deturpada, mas ao cotidiano do interior da maior potência global. É lógico que sobrarão especialistas americanófilos, sendo que muitos desses gênios de ocasião limitaram-se a, um dia, abraçar o Mickey, beijar o Pateta e mergulhar no universo das compras que existe na terra do Tio Sam.
A primeira sandice que surgiu após a vitória de Trump foi a demonização, por parte da direita, de alguns veículos de imprensa e analistas políticos, transformados, em questão de horas, na escória midiática embalada pela ideologia esquerdista. Acusados de esquerdopatas, esses profissionais foram alvo dos mais irresponsáveis ataques, como se seus algozes fossem especialistas em tudo e todos. Confesso que o ortodoxismo, em todos os seus escaninhos, assusta-me profundamente, pois nada tem solução à base do pé de cabra.
Até mesmo eu, que não fiz qualquer previsão sobre o resultado da corrida à Casa Branca, fui alvejado por comentários descabidos de pessoas que, rebocadas pela própria ignorância, creem ser o extremismo direitista a derradeira salvação do universo. No momento em que o ser humano dá as costas ao equilíbrio das forças, algo errado está dominando a cena de forma silenciosa.
O resultado das eleições norte-americanas era inesperado, apesar das profecias póstumas da direita ensandecida. O tema do momento é que só os imbecis não sabiam da avassaladora vitória de Donald Trump. Quem faz tal afirmação certamente desconhece os mais básicos conceitos da aritmética. Afinal, no voto popular Hillary Clinton venceu a eleição, mas a complexidade do sistema eleitoral ianque deu a vitória a Trump. Essas são as regras do jogo e ninguém pode reclamar.
Muita gente falou em lições que surgiram após o triunfo do bilionário bufão nas urnas, mas discordo dessa tese esdrúxula e simplista de analisar os fatos. Se ensinamento houve, o único é que os Estados Unidos estão incontestavelmente divididos. E só discorda disso quem gosta de ser enganado.
O filósofo Luiz Felipe Pondé, o qual tem meu incondicional respeito, afirmou que o resultado da eleição presidencial dos EUA foi uma dura resposta aos intelectuais que insistem em discutir questões que ficam a anos-luz do cidadão comum. Nesse ponto concordo com Pondé, por isso faço, há décadas, jornalismo simples e didático, mostrando ao consumidor da informação a realidade como de fato é, sem malabarismos, rapapés e devaneios. O que não significa que sou desprovido de opinião, até porque a manifestação do pensamento continua sendo livre.
Afirmou Luiz Felipe Pondé, também, que o resultado da corrida à Casa Branca mostrou que o americano encheu-se do status quo, já que sua preocupação é pagar as contas, a escola dos filhos, um emprego e fazer sexo de vez em quando. Aliás, creio que esse é o conjunto de coisas que atormenta a extensa maioria dos seres humanos. Por isso defendo que a informação seja a mais simples e objetiva possível, sem pompa e circunstância, pois ninguém vive na Academia Brasileira de Letras ou na biblioteca da Universidade de Harvard.
Voltando à demonização de veículos midiáticos e analistas políticos, esse movimento é no mínimo irresponsável. Os números da eleição presidencial norte-americana mostram não apenas isso, mas também e principalmente que a imprensa e os analistas não podem ser crucificados porque acreditaram nos resultados das pesquisas, que revelaram a realidade complexa de uma nação dividida. Considerando a margem de erro das pesquisas, não há vencedores e derrotados em termos de previsões.
De igual modo, a vitória de Donald Trump revelou que nas grandes potências cresce o extremismo político e a tese da antiglobalização. Afinal, além do triunfo do bilionário americano, não se pode ignorar a vitória apertada do Brexit e o avanço da extrema direita francesa. Quem pensa dessa forma [extremismo e antiglobalização] não consegue enxergar o que está à frente do próprio nariz. É fato que cada dia tem a sua agonia, por isso é importante viver o presente, mas não se pode deixar de pensar no futuro.
Se a grande preocupação deveria ser o futuro, desde que o presente esteja solucionado em parte, a pergunta que não quer calar é uma só: Donald Trump entregará ao seu eleitorado tudo aquilo que prometeu durante a campanha? Espero que não. Quem entende minimamente de política e economia internacionais sabe que se isso acontecer, o planeta viverá um novo e mais acirrado período de agruras. Ao falar em reescrever tratados comerciais, Trump aponta na direção de dias turbulentos em termos econômicos. Ao defender o protecionismo, o presidente eleito dos EUA manda uma mensagem cifrada: muitas economias terão de se preparar para o pior. E uma delas é a do Brasil, já que a anunciada redução das relações comerciais entre americanos e chineses produzirá reflexos negativos na economia verde-loura, ainda dependente da massiva exportação de commodities.
Na seara dos direitos humanos, dos imigrantes latinos, em especial os mexicanos, e dos refugiados, Trump certamente não fará o que prometeu, até porque a Casa Branca não é palco de reality show, algo que o eleito está acostumado a protagonizar. Sem contar que, mesmo com os republicanos dominando o Senado e a Câmara, o próximo presidente dos EUA dependerá do aval do Congresso. Tarefa que não é fácil e que sempre produz longas e acaloradas discussões.
Metade dos eleitores americanos que foram às urnas votou em Donald Trump na esperança de reaquecimento do setor de empregos, mas não se pode esquecer que o mercado local depende da mão de obra barata, o que fica por conta dos imigrantes latinos. Por mais que estejam preocupados com o emprego, os americanos rejeitam determinadas funções. É uma questão cultural que cresceu nas últimas décadas, apesar de também ter crescido a busca por uma vaga de trabalho. Paradoxal parece, mas essa é a realidade norte-americana.
Sobre a promessa de ressuscitar grandes empresas que marcaram a história dos EUA, Trump dificilmente conseguirá isso, a não ser que descarte a teoria da antiglobalização. Do contrário, a chance de crescer o índice de desemprego no país é grande.
Muitos creditaram a vitória de Trump ao fato de ele ser alguém fora da política, um “outsider”. Na verdade, ninguém pode ser mais “insider” do que Donald Trump, que construiu fortuna sugando tudo e mais um pouco do establishment local. E para isso cultivou relacionamentos na área política, inclusive com o casal Clinton, que de um jeito ou de outro beneficiou o milionário fanfarrão que comandará os destinos dos Estados Unidos pelo menos até janeiro de 2021.
Em outro vértice da euforia, alguns explicaram o triunfo de Trump com o fato de ele ser um empresário de sucesso. O presidente eleito dos EUA foi à falência em quatro ocasiões na esteira de seus cassinos (de propriedade da Trump Entertainment Resorts), em Atlantic City. A última bancarrota ocorreu em 2014, com Trump alegando que nada tinha a ver com a débâcle, mesmo tendo um terço das ações da empresa.
Em 1988, Trump comprou, por US$ 365 milhões, a Eastern Air Shutle, empresa que operava nas cidades de Boston, Nova York e Washington DC. Repaginada com o nome comercial de Trump Air, a empresa passou a oferecer serviço de bordo luxuoso, com aeronaves decoradas de maneira rebuscada. O negócio jamais deu lucro, sendo que o empresário deixou de pagar vários empréstimos vinculados ao negócio. A companhia aérea acabou nas mãos dos credores e teve suas operações encerradas em 1992.
Em 1989, Donald Trump lançou um jogo similar ao famoso banco imobiliário, mas também fracassou. Anos mais tarde, em 2005, o presidente eleito insistiu no setor de jogos e lançou um produto relacionado ao reality show “O Aprendiz”, mas de novo naufragou.
Em 2006, sob o slogan “sucesso destilado”, Donald Trump lançou nos EUA uma marca de vodka, acreditando que o negócio seria um tremando sucesso. Em 2011, a produção da bebida foi interrompida devido à falta de interesse dos americanos pelo produto.
Em 2007 aconteceu o lançamento da revista “Trump”, cujo conceito era “refletir as paixões de seus leitores com um conjunto cultural rico”. Menos de dois anos depois a publicação desapareceu. No mesmo ano surgiu a Trump Steaks, linha de carnes especiais, mas o negócio “implodiu” cinco anos depois, juntamente com a churrascaria Trump Steakhouse, em Las Vegas, fechada pelas autoridades por violar 51 regras do código de saúde local.
Donald também viu ir pelos ares a GoTrump.Com, empresa voltada para as viagens de luxo que durou apenas um ano. Criada em 2005, a Universidade Trump fechou as portas um ano depois, no vácuo de denúncias de alunos, que acusavam a entidade de oferecer aulas semelhantes a “infomerciais” (propagandas que costumam durar o mesmo tempo de um programa de televisão convencional).
O republicano eleito para um quadriênio na Casa Branca também fracassou com a Trump Mortgage, empresa de hipotecas criada em 2006, mas que ruiu em um ano e meio. Isso porque o empresário entregou o comando do empreendimento a E.J. Ridins, que à época se apresentava como grande executivo do mercado financeiro, mas que na verdade havia trabalhado apenas seis dias como corretor de ações em Wall Street. O que não é demérito, mas mostra a falência do faro de Trump.
Contudo, Donald Trump, o grande empresário (sic), não é só fracasso. No seu currículo há alguns negócios rentáveis, como o Hotel Grand Hyatt, a Trump Tower, o Wollman Rink (rampa de patinação e skate do Central Park), The Trump Building e o Trump Place (5,7 mil apartamentos divididos em 18 torres), empreendimentos localizados em Nova York. Fora isso, o magnata tem a Trump International Tower, em Chigago, que abriga um hotel, lojas, restaurantes e apartamentos residenciais.
Mas o espetáculo deprimente não parou por aí, já que as “cheerleaders” de Trump continuam ensandecidas. O maior absurdo ficou por conta da afirmação de que o republicano defenestrou os comunistas da cena política local. Como se na catedral primeira do capitalismo planetário esse movimento tivesse espaço. No máximo pode-se afirmar que nos EUA existe um reles punhado de comunistas aqui e outro acolá. E não se pode confundir liberal com comunista.
Por falar em comunismo, surgiu em plagas brasileiras a ideia de fundar um veículo de imprensa da direita, porque os muitos que existem atualmente são tendenciosos, segundo os inconformados. Ou seja, a sugestão é tão coerente quanto a equivocada, costumeira e pleonástica expressão “sair fora”. Veículo de imprensa de direita e de esquerda é algo tão absurdo em termos de liberdade, quanto o devaneio do dependente químico que diz saber dominar os efeitos das drogas. Alguns mais alucinados com a vitória do republicano afirmam estar cansados de jornalistas analistas. Por sorte terão, em breve, jornalistas analistas que preveem o futuro sob a ótica direitista.
Alguns brasileiros, que apostavam na vitória de Hillary Clinton, afirmaram, como ainda afirmam, que os americanos não sabem votar. Não se pode esquecer que quem elege Lula e Dilma Rousseff como inquilinos do Palácio do Planalto não tem moral para criticar o eleitor de Trump, que de gênio dos negócios nada tem. Apenas se deu bem em um mercado (imobiliário) que prospera nos EUA como erva daninha. E fazer fortuna em uma cidade que não mais tem espaço para se construir é algo tão lógico que torna-se enfadonho. Apenas a título de informação, Trump, a versão ianque de Midas, um dia elogiou rasgadamente a política econômica adotada por Lula, a mesma que levou o Brasil à maior crise da sua história.
Como não tenho bola de cristal, sou desprovido de vocação para profeta do caos e muito menos sonho em ser a Mãe Dináh de calças, prefiro ficar longe das previsões em seara tão complexa, mesmo conhecendo razoavelmente os EUA. Apenas torço para que Trump consiga fazer dos próximos quatro anos o período mais exitoso de sua carreira, já que a Casa Branca não é lugar de aprendiz e muito menos de quem explora a jogatina, vai à falência e foge da raia. In God we trust!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.