As lições que emanam da tragédia da Chapecoense sob o olhar da alma de quem viveu drama semelhante

(*) Ucho Haddad

ucho_24Pessoas próximas disseram nos últimos dias que ando revoltado. Esse comportamento nem de longe faz parte da minha essência, mas tenho sangue nas veias, meu coração ainda bate, meu cérebro funciona, meus olhos também abrem caminho às lágrimas. Não sou indiferente, mesmo ciente de que a vida ensinou-me a encarar seus fatos e atos com pragmatismo, às vezes com repetidas doses de frieza. Na selva em que se transformou a vida, vez por outra esse comportamento é necessário.

Confesso que nem tudo é capaz de comover-me – em tempos outros ocorria com certa facilidade –, mas não posso negar que a postura de um quase sem fim de pessoas provocou um misto de náusea e cólera. Isso porque a ópera sórdida que entoou no rastro do acidente com o avião da Chapecoense não caiu bem na alma. Provocou indigestão no pensamento, estupefação na crença.

Dispo-me da carranca de jornalista político e investigativo, que diuturnamente enfrenta e desafia os poderosos que insistem em violar a lei e chafurdar na lama da corrupção, para assumir o que de fato sou: ser humano com todas as letras, muitos defeitos, pouquíssimos predicados.

Quem transformou em bizarrice noticiosa a tragédia aérea que ceifou a vida de dezenas de pessoas, nos arredores da colombiana Medellín, apenas para exibir uma sapiência que inexiste, decerto não sabe o que fez. Desconhece a extensão da dor de quem ficou. Ignorou o impacto e os efeitos da notícia que ninguém sonha em receber. Caso tenha consciência do feito, está-se diante de um quadro de anorexia moral.

Sei que é muito maior a probabilidade de ocorrer um acidente automobilístico do que um aéreo, mas a morte na esteira de uma tragédia é algo inenarrável para aqueles que ficam e buscam uma resposta. O que se viu nos últimos dias foi um espetáculo deprimente de especialistas em tudo, começando por acidentes aéreos. Uns sabem mais do que os outros, e vice-versa, mas todos têm certeza de que sabem de tudo. Competem entre si para serem reconhecidos como professores da matéria. Tristeza maior só a que escorre da tragédia.

Por sorte, as duas únicas coisas que sei fazer são pensar e escrever. Sendo assim, prefiro aguardar a análise das caixas-pretas, que na realidade são alaranjadas, para emitir opinião sobre o que aconteceu com o avião que despencou sobre o Cerro Gordo. Para aqueles que afirmam ser a falta de combustível a causa do acidente, lembro que covardia e falta de caráter não matam.

Um acidente aéreo não acontece por causa de um fato isolado, mas por uma conjunção de fatores, os quais serão conhecidos mais adiante. Exceto em casos de atentado terrorista ou crime de encomenda. Por isso é impossível, no momento, bater o martelo e afirmar foi isso ou foi aquilo. Como mencionei, as alaranjadas caixas-pretas guardam o segredo. Mesmo depois do veredicto final, muitas perguntas – muitas mesmo – ficarão sem respostas. Porque cada um levará para sempre um punhado de interrogações, o que é natural. O tempo há de se encarregar dessas interrogações, colocando-as no endereço certo, numa repartição da alma, num canto do coração, em alguma prateleira do pensamento. A dor da perda diminui com o avanço do calendário, a da ausência há de arder em algumas ocasiões.

Pudesse o ser humano escolher a hora da morte, múltiplas prorrogações surgiriam em cena. Isso é impossível, já que a morte é a única certeza absoluta de quem está vivo. Ninguém quer morrer, como ninguém quer que o outro morra. Eu pelo menos não quero, nem mesmo que morram os adversários, os quais precisam estar vivos e fortes para o enfrentamento.

O detalhe é que essa tragédia aconteceu em época particular do ano, quando as pessoas ficam mais sensíveis, emotivas, chorosas, pensativas. Afinal, estamos a poucas semanas do Natal, quando comemora-se o nascimento de Cristo. E nesse dia a tragédia de Medellín será a dona da emoção, produzirá tristezas várias, lágrimas múltiplas. Saudades, dor, incertezas, medos. Na próxima data natalina o acontecimento será ainda recente, fazendo com que essas reações surjam incondicionais.

Discorro sobre o tema porque enfrentei situação idêntica, talvez pior na questão de data. Fonte maior de inspiração, meu pai viajou para não voltar. Morreu em acidente aéreo igualmente trágico, sendo que o sepultamento ocorreu no dia do meu aniversário. Ou seja, impossível esquecer, mesmo que tenha superado a dor em pouquíssimo tempo, em questão de dúzias de dias. Consegui transformar os efeitos colaterais da perda em combustível para a superação em todos os sentidos. Assim eliminei a possibilidade de o sofrimento ter capítulos extras, quiçá intermináveis.

A preocupação maior que tenho é com os familiares das vítimas, os amigos próximos. Como reagirão logo de início à ausência de alguém querido? Esse é um desafio considerável a ser enfrentado. Faz parte do luto, que precisa ser vivido para, em algum momento, permitir o retorno da vida à rota da normalidade – ou quase normalidade. O tempo para que isso ocorra depende de cada um, da capacidade individual de superação. Nessa hora é preciso ser resiliente.

Essa necessidade de vencer a prostração diante da morte tem, no caso da tragédia de Medellín, um ponto positivo. Trato do tema com tranquilidade e lógica, sem medo de críticas, porque de igual modo passei por tal experiência. Assim como eu, as famílias das vítimas terão para sempre a imagem do ente querido ainda com vida. Isso porque em acidentes aéreos os esquifes que guardam os corpos são lacrados. É como se a despedida não existisse, mesmo que ocorra, como se o último até logo ainda estivesse dentro do prazo de validade. Só não há lugar para a esperança de que a pessoa deu um pulo no céu e um dia há de voltar.

Quando informações sórdidas sobre o acidente do avião da Chapecoense começam a pulular por todas as partes, não demoro a pensar sobre a reação dos parentes à sombra dessa fermentação noticiosa. No contraponto emocionei-me com a estrondosa lição de solidariedade dos colombianos – a emoção ainda vem quando revejo as imagens. Só quem viveu algo semelhante sabe da importância de manifestações carinhosas como a que eclodiu no Estádio Atanasio Girardot, em Medellín. Confortam, parecem proporcionar doses da força que tanto precisamos.

Profundamente triste com o ocorrido, preocupado com as pessoas que perderam peças importantes do quebra-cabeça de suas vidas, entendo que o momento é de respeito incondicional, reflexão profunda, humanidade sem limites, amor ao próximo sem porquês. A razão é simples: as tais interrogações. Que com frequência decrescente retornarão ao pensamento de cada um para continuarem sem respostas. A vida segue!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

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