TV – O Império da Mentira

(*) Ipojuca Pontes

ipojuca_pontes_14O Grande Inquisidor – personagem de Dostoiévski que condenou Jesus Cristo à fogueira quando do seu retorno ao mundo, na Idade Média – proclamou o Milagre, o Mistério e a Autoridade como elementos fundamentais para subjugação da consciência humana. Cardeal de Sevilha, na qualidade de jesuíta, considerava o conceito de liberdade disseminado por Cristo uma carga por demais pesada a ser suportada pelos seres humanos. No entender do jesuíta, os homens seriam felizes se conduzidos como rebanho, longe do ônus do livre arbítrio que traria consigo sofrimento e dor.

Bem observado, a exploração da tríade evocada pelo Grande Inquisidor se encaixa à perfeição como lei básica a reger a televisão, em nossos dias o mais formidável instrumento de lavagem cerebral criado para domesticar os indivíduos. A rigor, há décadas a TV vem avassalando as massas.

De fato, tal qual um vírus letal, tanto nas chamadas democracias liberais quanto nos regimes totalitários, a onipresente TV se infiltrou no âmago humano e se impôs, em tom de farsa, como pretenso Portal da Verdade.

Na dura realidade, gerações inteiras só tomam conhecimento dos fatos manipulados pela ótica da TV, outrora considerada uma “máquina de fazer doido”, sem perceber que ela estabeleceu, em escala planetária, o Império da Mentira.

Voltemos ao Cardeal de Sevilha e o Milagre na TV?

Antes de tudo, é preciso admitir que ela mesma é um prodígio de transmissão (em som e imagem) amoldado à existência humana. No figurino de um eletrodoméstico, a TV vive de prometer milagres que nunca se cumprem, deixando o pobre mortal à mercê de maravilhas que ninguém sabe quando virão.

Exemplos? Há mais de quatro décadas, o “Fantástico” da Rede Globo anuncia tratamentos miraculosos contra o infarto, o câncer ou a doença do Alzheimer, sempre acalentando a perspectiva de que mais dia menos dia a cura de cada um desses males estará ao alcance de todos.

Há casos mais ostensivos: no Brasil (como, de resto, mundo afora), milhares de pastores mostram na TV aberta paralíticos que passam a andar, uma vez livres dos demônios, como modelos numa passarela.

Em outras ocasiões, ao vivo, depois de abençoados, dezenas de ex-miseráveis anunciam que se tornaram milionários da noite para o dia. Ou vemos/ouvimos relatos de casais, anteriormente infelizes que, por artes divinais, passaram a viver em um mar de rosas. É a TV a serviço do miraculoso.

(Já foi dito que a televisão é um circo infestado de palhaços, programas de auditório com bailarinas e roqueiros em desbunde, atores, novelas que se repetem infindavelmente, animadores, pilantras et cétera – em suma, um show em ato contínuo exibindo corridas de auto, lutas de MMA, partidas de futebol e mil peripécias imprevisíveis, tudo, afinal, para nos livrar do “tedium vitae”.

No seu lado tido como “sério”, para sacolejar as consciências anestesiadas e preencher o vazio das almas, a TV se esmera em explorar, exaustivamente, nos seus noticiários, desastres pavorosos, atentados terroristas, hecatombes, estupros, sequestros e fatalidades as mais escabrosas, transformando a tragédia humana em horrendo espetáculo tinto de sangue.

(Mas circula na praça versão da teoria compensatória segundo a qual, com a transmissão de desgraças, a “máquina de fazer doido”, de forma subliminar, procura demonstrar que a vida do espectador, por infeliz que seja, é mais tolerável do que a das vítimas expostas na telinha. Sem esquecer, é claro, que manter a boa audiência significa a alegria do departamento comercial).

E o Mistério? Na TV, o mistério parece impenetrável à razão humana, quem sabe um enigma obscuro só decifrável por poucos iniciados que, às escondidas, manipulam a engrenagem. Para uns, trata-se de mistério maior que o da Santíssima Trindade, que envolve Pai, Filho e Espírito Santo numa só pessoa.

Certa vez, um executivo do ramo revelou que o segredo enigmático da TV é que ela, nivelando tudo por baixo, descobriu a “igualdade”, eterna aspiração de espíritos acadêmicos. Pelo “tubo mágico”, dizia ele, todos seriam transformados em “escravos da igualdade”. Por ironia, em paralelo, um destrutivo escritor americano, Norman Mailer, declarou que o mistério da TV é ela manter audiência “apresentando tão baixo nível de qualidade”. O paradoxo de Mailer decifrou, na bucha, o Mistério nada misterioso da TV – uma descoberta mantida em sigilo sepulcral pelos seus mentores.

De todo modo, na sua homilia o Grande Inquisidor jamais tornou claro o papel desempenhado pelo Mistério na busca da felicidade terrena, salvo considerá-lo fundamental para subjugação da consciência humana.

Já o papel da Autoridade, para ele, era tudo. Segundo pontificou, a autoridade deveria se impor pela força legal (no seu caso, o castigo da fogueira na Santa Inquisição), ou na maciota, pelo poder da palavra, da dissuasão e do engodo. Esta, tudo indica, tem sido a estratégia adotada pela gente da TV, especialmente na área do jornalismo (onde despontam, em circuito interno, figuras como Bonner e William Waack), assunto que abordaremos no próximo artigo.

(*) Ipojuca Pontes, ex-secretário nacional da Cultura, é cineasta, destacado documentarista do cinema nacional, jornalista, escritor, cronista e um dos grandes pensadores brasileiros de todos os tempos.

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