Certa feita, alguém creditou ao general francês Charles de Gaulle a autoria da frase “O Brasil não é um país sério”. Quem fez isso errou de forma grosseira, pois De Gaulle não é o autor da frase que serve para uma nação diuturnamente dragada por escândalos de todos os matizes.
Não bastassem a roubalheira sistêmica que varre o Brasil e os seguidos desmandos protagonizados por políticos e autoridades, a população agora foi surpreendida por um escândalo que durante algum tempo colocou em risco a saúde de centenas, talvez milhares, de pessoas desavisadas.
O Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal (PF) estão mergulhados em uma investigação para apurar se materiais cirúrgicos foram reutilizados após procedimentos realizados no Hospital das Clínicas de São Paulo, certamente o maior centro médico-hospitalar da América Latina. A informação foi divulgada na quarta-feira (8) pelo telejornal “SPTV”, da TV Globo, e confirmada pelo MPF.
De acordo com os procuradores da República, eletrodos e estimuladores cerebrais, comumente utilizados para o tratamento do mal de Parkinson, eram reaproveitados pela equipe de determinado médico do Núcleo de Neurocirurgia Funcional do HC. Situação idêntica teria ocorrido com agulhas e diversos materiais cirúrgicos descartáveis.
Deflagrada em julho de 2016 e tendo como alvo o Hospital das Clínicas (SP), a Operação Dopamina identificou suspeitas de irregularidades no uso dos materiais mencionados. O objetivo da operação era apurar eventual desvio de recursos públicos na compra de equipamentos utilizados para implantes no tratamento de Mal de Parkinson, mas a PF acabou encontrando outras irregularidades. Ou seja, como prega a sabedoria popular, os investigadores “atiraram no viram, mas acertaram no que não viram”.
Diante da descoberta de novos e graves ilícitos, a Justiça Federal autorizou uma nova operação de busca e apreensões no HC, no último dia 15 de fevereiro, ocasião em que foram apreendidos “sacos de material localizados no expurgo (para reesterilização) e na sala principal da Central de Material, prontos para serem reprocessados”.
A reutilização de materiais cirúrgicos – como geradores, eletrodos e extensores implantáveis – é proibida pela resolução RDC 515, editada em fevereiro de 2016, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), informa o MPF. Apesar dessa proibição, o órgão afirma não ter informações acerca de danos à saúde dos pacientes que receberam reimplantes.
Em nota, o HC informou que uma comissão interna do IPq (Instituto de Psiquiatria) identificou a presença de materiais cirúrgicos vencidos e que os mesmos foram imediatamente recolhidos. Duas sindicâncias foram instauradas para identificar os responsáveis pelas gravíssimas irregularidades, mas é preciso ressaltar que é impossível que tal procedimento (de reutilização de materiais) não fosse de conhecimento da direção do hospital. Um médico e um servidor administrativo já foram afastados, ao passo que uma enfermeira foi transferida de setor.
No comunicado, o HC ressalta que foram realizadas análises “minuciosas dos prontuários de todos os pacientes que sofreram cirurgias que, em tese, poderiam ter envolvido o uso de materiais irregulares”, mas que em nenhum deles foi constatado o uso de material irregular, portanto, sem comprometimento da saúde dos mesmos.
Fosse o Brasil um país minimamente sério e leis severas, os responsáveis por esse crime, sem exceção, já estariam demitidos e presos, sem direito a qualquer benefício. Porém, como essa barafunda verde-loura é o paraíso do “faz de conta”, dentro de algumas semanas o escândalo já terá caído na vala do esquecimento.
Entenda o caso
Em julho de 2016, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo exigiu explicações do Hospital das Clínicas sobre as irregularidades na compra de marcapassos cerebrais para o tratamento de pacientes com Mal de Parkinson. O conselheiro Antonio Roque Citadini cobrou da direção do HC informações sobre os responsáveis pelos os pedidos de compra dos marcapassos e pela autorização das despesas.
A investigação conduzida pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal apontou que Waldomiro Pazin, diretor administrativo do hospital, e o médico cirurgião Erich Fonoff, responsável por 75% das cirurgias investigadas, orientavam os pacientes a procurarem a Justiça para conseguir marcapassos de maneira mais rápida.
Em razão das liminares concedidas pela Justiça, o HC era obrigado a adquirir equipamentos sem licitação e com sobrepreço de até 400%. Adotado em várias cidades brasileiras por médicos que fazem da profissão uma senha para o enriquecimento criminoso, o esquema pode ter custado até R$ 18 milhões ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Waldomiro Pazin e Erich Fonoff foram conduzidos coercitivamente para prestar depoimento às autoridades que conduzem as investigações. Fonoff era figrua conhecida nas redes sociais por defender o impeachment da então presidente Dilma Rousseff e cobrar o fim da corrupção no País, a prisão de Lula e o fim do PT.
Além de Waldomiro Pazin e Erich Fonoff, o Judiciário também determinou a condução coercitiva de Vitor Dabbah, dono da Dabasons, importadora dos equipamentos (marcapassos), e de Sandra Ferraz, funcionária da mesma empresa.
O esquema funcionou entre 2009 e 2014, nos governos tucanos de José Serra e Geraldo Alckmin, período em que foram realizadas, com ordem judicial, 154 cirurgias de implante para tratamento de Mal Parkinson com recursos do SUS.